As parábolas ainda
têm muito a nos dizer e podem continuar colocando-nos em movimento
(Unsplash/Ben White) Parábolas
trazem intrigas narrativas que surpreendem e prometem desfechos inesperados,
suscitando virada do coração
Seria demais lembrar que os
evangelhos não são nem biografia de Jesus nem crônica histórica? A essa altura,
todos nós sabemos que os evangelhos têm um profundo caráter querigmático:
revelar que Jesus é o homem que vem de Deus. Mostrar sua vida, paixão, morte e
ressurreição como a aproximação de uma boa-notícia: a de que a salvação, enfim,
chegou. O que temos com os evangelhos, pois, são relatos catequéticos que fazem
transparecer uma experiência vital com Jesus, experiência rica e aberta a todos
que ainda ousem se aproximar deles. E por mais que possamos fazer associações
entre eles, cada um possui uma teologia própria, particularidades notáveis e
fundamentais, estruturas diferentes e procura fazer memória da vida de Jesus,
respondendo aos problemas da comunidade de fé 'escriturante'. Cada evangelho
constitui, particularmente, um laboratório de linguagens.
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O Evangelho de Mateus,
especificamente, se esforça por mostrar Jesus como novo Moisés e não é em vão
que o evangelista o mostra sempre como um rabi, um mestre que tem a ensinar,
não apenas com suas palavras, mas também com suas obras. Por isso mesmo, o
evangelho está estruturado em cinco grandes discursos (cf. Mt 5?"7; 10;
13,1-52; 18; 24?"25); para dar a entender que Jesus é aquele que faz
aparecer o sentido pleno (o plerôo) da Torah. A verdadeira justiça
não está presente num seguimento formal da lei, mas se dá no ajustamento à
vontade de Deus que Jesus encarna com sua vida entregue, doada aos últimos;
justiça que nos justifica (salva), justiça que é a própria misericórdia. Depois
de cada discurso (palavras), o evangelho põe em cena uma narrativa, mostrando a
práxis de Jesus e seus discípulos (obras).
Um dos discursos de Jesus é o
discurso em parábolas, contido no capítulo treze. Ali encontramos sete
parábolas sobre o Reino dos céus. Sem nos apegarmos aos caráteres formal e
estrutural desse capítulo, nós queremos nos deter sobre o sentido mesmo de
parábola, sobre o contexto do discurso na trama do evangelho, perguntando-nos
também sobre o sentido das parábolas para a comunidade 'escriturante'. Em
seguida, nós queremos tentar uma atualização desse discurso para nós,
comunidade narratária.
As parábolas têm sempre algo de
estranho. As imagens apresentadas são pouco estranhas ao meio ambiente cultural
daquela época, é verdade. Elas são acessíveis aos seus ouvintes, são
compreensíveis e traduzem de modo transparente aquilo que Jesus quer dar a
conhecer com elas. Entretanto, é outra a reação diante das parábolas. Elas causam
escândalo, soam incompreensíveis até mesmo para os discípulos, provocam uma
interpretação da realidade que desloca as intepretações já conhecidas de longe,
que catastrofizam sentidos. Seja sobre a relação entre as pessoas ou sobre a
relação com Deus, elas têm uma potência significante que não se esgota. Logo,
as parábolas de Jesus têm algo de estranho para seu tempo, porque apesar de
falar a partir da realidade e de imagens muito conhecidas, elas causam algum
escândalo, alguma conversão do olhar, ou como diria Paul Ricoeur, no
livro A hermenêutica bíblica: "um virar da visão, da
imaginação, do coração antes de toda forma de boas intenções, de boas decisões
e de boas ações". Elas são estranhas, porque as intrigas narrativas que
portam surpreendem e prometem desfechos inesperados. Portam uma boa-notícia
estruturada como novidade, como invenção da linguagem. Com um esquema narrativo
criativo e com tramas que têm desenlaces surpreendentes, elas são um evangelho
dentro do evangelho.
Estranhas, mas estranhamente
familiares, as parábolas não falam de um Reino dos céus distante da vida. Elas
ainda nos deixam atônitos, como insiste Paul Ricoeur, dentre outros motivos,
porque usam uma linguagem profana, extremamente banal, para revelar a novidade
do Reino. Não há revelação sobre anjos, sobre demônios e, mesmo quando as
referências são escatológicas, a linguagem não é a do sagrado, mas a linguagem
da nossa história. "O extraordinário é como ordinário", dirá Ricoeur.
E, embora a linguagem seja permeada de imagens agrícolas ou familiares, elas
não ficaram erodidas pelo tempo. Estrangeiras a nós, o que elas portam de
estranhável provoca o desejo, o sonho e a responsabilidade por eles, que são as
realidades mais entranhadas em nós. Por isso, do estranhável ao entranhável, as
parábolas não funcionam apenas como espelho da vida, mas são um convite à vida
mesma, convocam como uma flecha inflamada de desejo à pergunta: o que há para
além do dado? O símbolo aponta para o que há além do dado, por isso ele dá a
pensar. E por que não: o símbolo oferece a oportunidade de desejar e sonhar,
para além da letra, para além dos significantes e mesmo para além do que já
estamos habituados a fazer. Logo, apesar de serem comparações, as parábolas não
têm caráter elucidativo como o mashal da tradição rabínica,
mas são um acontecimento do Reino na própria linguagem.
Na trama do Evangelho de Mateus, as
parábolas do Reino têm um caráter de escondimento e revelação. É uma resposta à
incredulidade dos sábios e entendidos que se recusaram a acolher a Palavra do
Senhor e uma revelação aos pequeninos que a compreendem e que são chamados a
deixar de fazer parte da multidão e a seguir Jesus de perto, como discípulos
(cf. Mt 11,25-27). Mas o discurso em parábolas, na trama narrativa, também
parece responder à própria incredulidade dos discípulos quando se veem diante
do fracasso do anúncio ou quando se veem perdidos entre falsas e fáceis imagens
de messianismo. Afinal, na ação de Jesus vai ficando evidente um messianismo
completamente avesso à expectativa de uma reconstrução do Reino de Davi.
Já para a comunidade ?escriturante?,
as parábolas são um meio eficaz de catequese eclesial poderosamente simbólico.
A comunidade de Mateus, é importante lembrar, encontrava-se surpresa diante da
conversão dos pagãos e da difusão da Igreja (uma grande hortaliça de mostarda
aninhando os passarinhos- Mt 13,32). Mesmo assim, havia grandes preocupações
com o a tibieza e a comodidade da fé, com a pressão das perseguições do mundo
hebraico e pagão (a tentação é permanecer em casa e não ir para a beira do mar,
diferente de Jesus ?" Mt 13,1). É preciso manter a coragem mesmo diante
dos insucessos, persistir na confiança na força da semente da Palavra
(cf.13,1-9); romper com as tentações de purismo (cf. 13,24-30) e não cair na
tentação de grandeza ou poder (cf. 13,31-32). Mesmo como grande árvore de
mostarda, o sentido da comunidade não é ostentar poder ou triunfo, mas oferecer
sombra e ninho; ser morada e abrigo. Mesmo na inaparência, na discrição, a
missão da comunidade é ser fermento na massa (cf. Mt 13,33). Vale a pena
arriscar a vida por causa desse Reino, pois encontrá-lo é ter se surpreendido
com um tesouro, é ter encontrado a tão procurada pérola preciosa (cf. Mt
13,44-46). Esse Reino tem seu já, especialmente quando a comunidade supera a
tentação de exclusão. É preciso lembrar que a missão é a de ser pescadores de
homens, como faz o início do Evangelho (cf. Mt 4,19); logo, deve-se lançar as
redes e evitar julgamentos apressados, preconceitos e condenações (cf. Mt
13,47-50).
Para nós, comunidade narratária, o
discurso em parábolas é muito rico: um coração pulsante dentro do evangelho de
Mateus. Ainda estamos às voltas com a necessidade de uma Igreja em saída, que
se arrisque "à beira-mar", que corra o risco do insucesso e lance as
sementes prodigamente, com a confiança de que em algum terreno ela haverá de
germinar e produzir frutos. Uma confiança, portanto, mais na força da semente
do que em nós mesmos (cf. Mt 13, 1-9). Estamos às voltas também com a
necessidade da maturação de nosso olhar, com a necessidade de sofrer o tempo de
maturação que certas realidades da vida exigem. A parábola do joio e do trigo
(cf. Mt 13, 24-30) é um convite a superar imediatismos e, sobretudo, a
questionar a tentação tão conhecida de nos separarmos entre bons e maus, de
fazermos juízos rápidos, de constituir o grupo do "nós versus eles",
repetindo o maniqueísmo frequente com que lemos a realidade: nós bons, eles
maus; nós puros, eles impuros; nós santos, eles pecadores. A parábola questiona,
assim, nossas intolerâncias, fundamento de muitos fanatismos e
fundamentalismos; questiona nossas ilusões de sermos apenas trigo, de não
possuirmos ambiguidades.
Também continuamos insistindo em
muitas ilusões de grandeza e não é raro ver-nos enquanto Igreja, aliando-nos a
esquemas injustos, que fazem morrer ao invés de trazer vida. Para não cairmos
na tentação de grandeza é importante não descuidar das coisas pequenas. Mais
uma vez o olhar precisa se abrir para ver entre as pequenezes, entre as
precariedades de nossa existência, a presença de Deus e seu reinado, crescendo
como semente de mostarda (Mt 13, 31-32). E enquanto fermento na massa (Mt
13,33), a missão da Igreja não é de ajustamento à ordem, mas deve ser
subversiva (como o fermento, considerado impuro para os judeus). A missão de
constituir o Reino não é cúltica e religiosa apenas (como a ação da mulher, tão
afastada do culto, como o fermento). Ela começa a partir dos mais excluídos,
dos considerados impuros, inclusive para a religião. Sua missão é transtornar
(e transformar) a ordem injusta, excludente e preconceituosa, mesmo (ou
principalmente) quando ela busca se amparar teologicamente.
O Reino dos céus, como dom (tesouro)
ou como achado (pérola) tem a força de um acontecimento que muda a nossa vida,
realoca sentidos, relativiza o que precisa ser relativizado, faz deixar de
pedir o infinito do finito (cf. Mt 13, 44-46). Esse acontecimento faz-nos
depositar o coração em tesouros que não são corroídos nem roubados (cf. Mt 6,
19-21): o tesouro do amor e da defesa da justiça, o tesouro de entrar na vida,
seguindo Jesus. O Reino é também como uma rede envolvente, que abraça a todos
(cf. Mt 13,47-49) e, antes de fazermos a separação que nossa arrogância e
pretensão religiosas ainda insistem em querer fazer, é preciso lembrar que todo
e qualquer juízo que separe "a pesca" em santos e pecadores, bons e
maus, não nos cabe. Ela pertence tão somente a Deus. Nossa missão de pescar não
é, tampouco, parecida com o proselitismo, com ajuntar seguidores. É antes
arrancar do mar da morte, todos aqueles que estão perdidos.
As parábolas, de fato, ainda têm
muito a nos dizer e podem continuar colocando-nos em movimento. Como
comunidades narratárias, não somos apenas receptores de uma mensagem morta,
como um punhado de letras deitadas num papel. Somos comunidades que se reúnem
ao redor da Palavra viva e vivificante. Continuamos a ler as parábolas como
quem se dá conta do quanto elas são potentes e fazem acontecer algo em nós.
Continuamos a (re)inventar a vida como parábola do amor de Deus. As parábolas
estão longe de ser historietas morais ou fábulas; elas ensinam, sim, e ensinam
muito, mas elas são, sobretudo, um modo de Deus se dizer, em Jesus. São um modo
de dizer de seu Reino, de dizer da vida como projeto de seu amor.
*Eduardo César é padre da Diocese de Uberlândia,
graduado em Filosofia pela PUC-Uberlândia e em Teologia pela FAJE, e Psicologia
pela Pitágoras de Uberlândia. Está em formação psicanalítica.
Fonte:domtotal.com
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