Católicos
comemoram o Dia da Bíblia por ocasião da memória de São Jerônimo em 30 de
Setembro (Joel Muniz/Unsplash) Melhor
modo de valorizar a Bíblia seria libertá-la de um uso instrumentalizador e
desumano que alguns grupos fazem
Marcelo Barros
Na Igreja Católica,
setembro é o mês da Bíblia. Neste mês, o último domingo, ou seja, este próximo,
é celebrado como o Dia da Bíblia. Igrejas evangélicas o celebram em um domingo
de dezembro. Seja como for, parece que, atualmente, o melhor modo de valorizar
a Bíblia seria libertá-la de um uso instrumentalizador e desumano que alguns
grupos fazem.
De fato, desde tempos
antigos, a religião, qualquer que ela seja, tem sido usada pelos poderosos para
legitimar o seu poder. Isso tem ocorrido também no uso da Bíblia. Muitas vezes,
a Bíblia foi usada até para matar. Na história, a Igreja usou textos bíblicos
para condenar hereges à fogueira. Em nome da Bíblia, o próprio Jesus foi
condenado à morte, acusado de ter blasfemado contra o templo e por se dizer
filho de Deus.
Em nome de Jesus e da
Bíblia, impérios que se diziam cristãos conquistaram e colonizaram nosso
continente. Até quase nossos dias, missões cristãs atacaram e demonizaram
culturas indígenas e levaram doenças e morte a comunidades originárias. Nestes
dias, quase cotidianamente, em nome de Jesus e motivados pela Bíblia, grupos
pentecostais atacam e destroem templos afro-brasileiros. No Congresso Nacional,
há uma bancada que se diz da Bíblia para legitimar as bancadas do boi e da
bala. Muitos dos congressistas se orgulham de pertencerem às três, como se
fossem uma só.
Há quem culpe a Bíblia
pelo fato de que, nas eleições de 2018, a maioria das pessoas que se dizem
cristãs votou pelo candidato do ódio e da violência, enquanto a maioria dos que
se dizem ateus votou pela democracia.
O apóstolo Paulo
escreveu: "A letra mata. É o Espírito que faz viver" (2 Co 3, 6).
Grupos e Igrejas fundamentalistas não conseguiram apagar ou jogar no lixo esta
palavra. A própria Bíblia deixa claro que ela não quer ser lida ao pé da letra.
Nos evangelhos, a todo momento, Jesus diz: "na Bíblia, se lê assim, mas eu
tenho outra interpretação para isso" (Mt 5, 21 ss). Se nós somos
discípulos e discípulas de Jesus, devemos desenvolver na leitura da Bíblia a
mesma liberdade espiritual que Jesus viveu e nos propôs.
De acordo com a nossa
fé, Deus se revela à humanidade através de dois livros: o primeiro é o livro da
vida. A própria terra e a natureza são palavras que nos comunicam
permanentemente o amor divino. As comunidades católicas costumam dizer em cada
celebração da ceia de Jesus: "O céu e a terra estão cheios da vossa
presença". E este Deus que nos manifesta o seu amor na criação, nos dá sua
Palavra através dos acontecimentos da vida. Mas, para decifrar esta mensagem,
precisamos do segundo livro sagrado que Deus revelou: a Bíblia para os judeus e
cristãos e outras revelações para outros grupos espirituais e outras religiões.
Na compreensão
judaico-cristã, a Bíblia não é diretamente a Palavra de Deus. Ela é a escritura
da Palavra de Deus. Em um de seus primeiros escritos, Carlos Mesters a
comparava com uma partitura musical. Para quem toca um instrumento ou canta, a
partitura é muito útil. No entanto, a mesma partitura possibilita que a canção
ali escrita possa ser interpretada por alguém como lamento e por outro como
protesto. Uma mesma canção de amor pode ter versão mais dolente, ou
interpretação mais alegre. No Novo Testamento, as primeiras gerações de
cristãos e cristãs leram a Bíblia de formas diversas, que não se opõem, mas ao
contrário, se complementam.
Este mês da Bíblia pode
ser oportuno para nos ajudar a descobrir uma palavra de Deus nos textos antigos
para assim discernir, o que o Espírito de Deus diz, hoje, às Igrejas e ao
mundo. A Bíblia, lida de forma não fundamentalista, pode ajudar-nos a
compreender o que Deus nos diz através dos acontecimentos de cada dia.
Há quem pense na
Bíblia como luz que esclarece tudo. No entanto, não é esta a experiência dos
primeiros cristãos. Na 2ª carta atribuída a Pedro, o autor descreve os textos
bíblicos, não como farol ou luzeiro e sim como lampadazinha "que fazeis
bem em prestar atenção. Ela (a palavra da Escritura) brilha em lugar escuro até
que o dia clareie a estrela da manhã, o sol, brilhe em vossos corações" (2
Pd 1, 19).
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