Falta
liderança nacional para coordenar distribuição dos testes (Najara Araujo/Câmara
dos Deputados)
O RT-PCR é um dos exames mais
eficazes para identificar o novo coronavírus
Um total de 6,86
milhões de testes para o diagnóstico do novo coronavírus comprados pelo
Ministério da Saúde perde a validade entre dezembro deste ano e janeiro de
2021. Esses exames RT-PCR estão estocados num armazém do governo federal em
Guarulhos e, até hoje, não foram distribuídos para a rede pública. Para se ter
ideia, o SUS aplicou cinco milhões de testes deste tipo. Ou seja, o país pode
acabar descartando mais exames do que já realizou até agora. Ao todo, a Saúde
investiu R$ 764,5 milhões em testes e as unidades para vencer custaram R$ 290
milhões - o lote encalhado tem validade de oito meses.
A responsabilidade
pelo prejuízo que se aproxima virou um jogo de empurra entre o ministério, de
um lado, e estados e municípios, de outro. Isso porque a compra é feita pelo
governo federal, mas a distribuição só ocorre mediante demanda dos governadores
e prefeitos. Enquanto um diz que sua parte se resume a comprar, os outros
alegam que o governo entregou material incompleto, falta de capacidade para
processar as amostras e de liderança do ministério nesse processo.
O RT-PCR é um dos
exames mais eficazes para diagnosticar a Covid-19. A coleta é feita por meio de
um cotonete aplicado na região nasal e faríngea (a região da garganta logo
atrás do nariz e da boca) do paciente. Na rede privada, o exame custa de R$ 290
a R$ 400. As evidências de falhas de planejamento e logística no setor ocorrem
num período de aumento dos casos no País.
Os dados sobre o prazo
de validade dos testes em estoque estão registrados em documentos internos do
ministério, com compilação de dados até o último dia 19. Relatórios acessados
pela reportagem indicam que 96% dos 7,15 milhões dos exames encalhados vencem
em dezembro e janeiro. O restante, até março. O ministério já pediu ao fabricante
análise para prorrogar a validade dos produtos. A falta de outros componentes
para realizar testes, um dos problemas que travam o fluxo de distribuição,
porém, deve continuar.
A pasta diz que só
entrega os testes quando há pedidos dos estados. Ainda ressalta que nem sequer
as 8 milhões de unidades já repassadas foram totalmente consumidas. Secretários
estaduais e municipais de Saúde dizem que não usaram todos os testes, pois
receberam kits incompletos para o diagnóstico, com número reduzido de reagentes
usados na extração do RNA, tubos de laboratório e cotonetes de coletar
amostras. Também veem dificuldade para processar amostras. Isso prejudica o
repasse dos produtos, pois as prefeituras, em especial, não têm como armazenar
grandes quantidades.
O ministério lançou
duas vezes o programa Diagnosticar para Cuidar, que previa 24,2 milhões de
exames no SUS até dezembro. Só 20% foram feitos. A pasta prometeu também
insumos para entregar kits completos, mas os negócios foram travados por
suspeita de irregularidades, hoje sob análise do Tribunal de Contas da União
(TCU).
Com meta de alcançar
115 mil testes diários no SUS, o ministério registrou em outubro média de 27,3
mil na rede pública, número inferior ao dos dois meses anteriores. Militares
com cargos de influência na pasta ouvidos pela reportagem consideram o ritmo
razoável. A auxiliares, o ministro Eduardo Pazuello já afirmou que há testes
suficientes nas mãos de Estados e municípios. A cúpula da pasta avalia que as
amostras excedentes podem ser enviadas a centros equipados pelo ministério,
como o da Fiocruz em Fortaleza. Gestores da Saúde ainda dizem que o diagnóstico
pode ser feito pelo próprio médico, o que tornaria o RT-PCR menos importante.
Especialistas, porém,
dizem que o teste não serve só para diagnóstico. É essencial na interrupção de
cadeias de infecção. “A vantagem da Europa, agora, é que aumentou tanto a
capacidade de testagem que é possível detectar casos leves”, diz o vice-diretor
da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), Jarbas Barbosa. Para ele, um bom
indicador para verificar se o país testa pouco é o número de positivos. Se for
acima de 5%, é sinal de que os testes são insuficientes. No Brasil, cerca de
30% dos exames RT-PCR no SUS deram positivo.
Estados e cidades
Sem a liderança do
ministério, Estados e municípios adotaram estratégias próprias de testagem, em
muitos casos, também ineficientes. Contrariando recomendações da OMS, alguns
locais apostaram em exames sorológicos, como os testes rápidos, que encontram
anticorpos para a doença. Ele é útil para mostrar que a infecção ocorreu no
passado e foram criadas defesas no organismo contra o vírus, além de mapear por
onde a doença já passou, por inquéritos sorológicos. Mas não serve para alertar
sobre a alta de casos ativos.
Os conselhos de secretários
municipais (Conasems) e estaduais de Saúde (Conass) afirmam que o ministério
não entregou todos os kits de testes e máquinas para automatizar a análise das
amostras que havia prometido. “O contrato que permitia o fornecimento de
insumos e equipamentos necessários para automatizar e agilizar a primeira fase
do processamento das amostras foi cancelado pelo Ministério da Saúde”, destacou
o Conass. “Há o compromisso da pasta de manter o abastecimento durante o
período de 3 meses, contados a partir do cancelamento. É fundamental, porém,
que uma nova contratação seja feita e a distribuição dos insumos seja retomada
em tempo hábil”, completou.
Já o assessor técnico
do Conasems, Alessandro Chagas, diz que a dificuldade para processar amostras,
que pode exigir envio do material a outro Estado, desestimula a fazer testes.
“O que causa estranheza é esse estoque parado enquanto temos dificuldade de
levar a coleta para a atenção básica”, diz.
Falha no
armazenamento
A preservação do teste
de diagnóstico da Covid-19 exige cuidados especiais. Pequenas alterações de
temperatura no armazenamento podem mudar o resultado do exame. “Quando o kit
passa do vencimento, as enzimas podem perder sua eficiência. Para um contexto
de diagnóstico, pode acabar levando a variações no resultado final”, afirma
Mellanie Fontes-Dutra, pós-doutoranda em Bioquímica na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). “Vejo com muita preocupação a possibilidade de
estender os kits para além do prazo de validade”, afirma.
A pesquisadora pondera
que seria positivo confirmar que os exames podem ser usados por mais tempo,
desde que mantenham a qualidade. “Testamos muito pouco. Se der certo e não
modificar a eficiência dos kits, pode ser bom”, disse.
Procurada, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não deu detalhes sobre como a
validade do produto pode ser renovada, mas informou que a entrega de testes
vencidos é uma infração sanitária.
O Ministério da Saúde
disse que a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) está realizando estudo
“para verificar a estabilidade de utilização dos testes”. Os testes foram
comprados pelo governo federal por meio da organização. O resultado da análise
deve sair na próxima semana, diz o Ministério da Saúde. Questionado sobre o que
fará para entregar os testes antes de vencer a validade, o ministério apenas
declarou que distribui os exames a partir de demandas dos estados.
Sob a gestão do
general Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde tem sido alvo de críticas em
meio à pandemia ao, por exemplo, não dar orientações claras sobre o benefício
do distanciamento social, uso de equipamentos de proteção e outros cuidados
básicos.
Na última quarta-feira
(18), 0 Ministério da Saúde chegou a excluir do Twitter uma publicação que
reconhecia não existir vacina ou medicamento contra a Covid-19, além de
orientar o uso de máscara e isolamento social. As orientações seguiam cartilhas
de autoridades sanitárias e entidades médicas, mas chamaram a atenção nas redes
sociais por se contrapor ao discurso do presidente Jair Bolsonaro (sem
partido), que já estimulou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra
o novo coronavírus, como a hidroxicloroquina.
Fonte: Agência Estado
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