Somos eternamente crianças que esperam e adultos ansiosos por renascer, por recomeçar (Unsplash/Jonathan Borba)
O adulto Adão, que não teve
infância, contrasta-se com o menino de Belém: Deus se fez criança, mas nos
criou adultos
Nasce uma
criança, tudo recomeça! Com a palavra Jo 1,1-18
Hoje é Natal! Amanhã,
mais precisamente, daqui a seis dias, um novo ano surgirá no horizonte de
nossas vidas. Nessa perspectiva, proponho refletir a partir das palavras
iniciais do evangelho que nos inspiram, Jo 1,1-18: "No princípio era a
Palavra. E a Palavra estava com Deus." A Palavra criadora de Deus que faz.
No princípio do ano
que ora finda, a palavra das rodas de conversa era um desconhecido e invisível
vírus de origem chinesa, batizado de coronavírus que estava prestes a nos
atacar. Tudo era muito incerto! O que poderia acontecer? Pouco se sabia do que
estava reservado para a humanidade. Assolado pela morte avassaladora, o planeta
terra se viu trancado em suas próprias casas. A palavra coronavírus cedeu lugar
a uma pior, pandemia, que é sinônimo de peste. A pior das pandemias que
humanidade sofreu foi a bubônica (séc. 14), também chamada de negra, devido às
manchas escuras na pele dos infectados causadas por uma bactéria, também de
origem chinesa, chamada de Yersínia.
Assistimos em 2020 à
politização da peste, a morte sem despedida, o sofrimento de agonizantes. Foi
um ano em que a palavra que foi barrada pela parede de máscaras das mais
variadas cores e tons de vozes que não sabiam o que dizer.
No princípio de março,
o Brasil se viu mergulhado numa pandemia que ainda não terminou, ainda que a
ciência corra veloz com os milhares de tipos de vacina. No princípio, na
inspiração de João, o evangelista, que, segundo a tradição, é representado pela
águia, por nos apresentar, com suas reflexões, a profundidade do mistério de
Deus no meio de nós, estão as primeiras palavras do livro de Gênesis: "No
princípio, Deus criou com a sua palavra" (Gn1,1), as quais ele acrescenta:
no princípio era a Palavra e a Palavra estava com Deus. Na Palavra de Deus está
a vida, vida que é a luz para os nossos passos, luz que ilumina as trevas de
nossas vidas. Luz que é sinônimo de Natal.
A mulher grávida de
sonhos dá à luz uma criança, um bebê que simboliza a esperança. O que será de
sua vida? Nem a criança, tampouco a mãe o sabe. Basta esperar e sonhar. Por
isso, Natal é também o maior simbolismo do sonho de um novo tempo, como na
lenda egípcia da fênix que renasce das cinzas ou do pelicano que renasce a
partir do seu próprio sacrifício.
O nosso eterno poeta,
João Guimarães Rosa, escreveu em Grandes sertão: veredas: "nasce
uma criança, tudo começa de novo". Isso é Natal! Deus se fez carne na
criança de Belém, mas a mudança só pode vir do adulto Adão e Eva, imagens
figurativas da Palavra criadora de Deus. Ele se fez criança, mas nos criou
adultos, de modo que tomemos consciência de nossas limitações, dos sofrimentos
que invadem as noites escuras de nossas vidas. Deus se fez carne, isto é, nos
assumiu por inteiro na nossa humanidade que recebe a luz que vem Dele.
O adulto Adão, que
nunca foi criança, contrasta-se com a criança de Belém. Simples de entender.
Para o judeu do Primeiro Testamento, o homem novo só pode vir do adulto, pois
criança não tem valor. Para os cristãos do Segundo Testamento, o novo começa do
princípio de uma vida que nasce cheia de esperança, na experiência de Deus que
se faz pequeno. Na verdade, somos eternamente crianças que esperam e
adultos ansiosos por renascer, por recomeçar.
Recomeçar após o árduo
sofrimento de um ano marcado pela pandemia. Vamos acreditar que um novo tempo
está próximo. Voltemos ao normal de nossas vidas com certeza de que tudo terá
que ser diferente. É Natal, princípio do fim da palavra pandemia. Princípio da
Palavra recriadora de Deus. Para que no ano novo renasça um novo ser humano,
tudo depende de nós, de novas relações. Que a Luz de Deus do Natal brilhe em
carne, em nosso ser. E tudo será diferente. Acredite. É Natal!
*Doutor em Teologia Bíblica pela
FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto
Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Membro da Associação Brasileira
de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e
coautor de quatorze. Últimos livros: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer:
da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa
Morte (Vozes, 2019). Coautor de: A releitura do Deuteronômio nos evangelhos.
In: KONINGS, Johan; SILVANO, Zuleica Aparecida. (Org.). Deuteronômio: Escuta,
Israel. 1ed.São Paulo: Paulinas, 2020, v. 1, p. 187-230. Inscreva-se no nosso
canal: https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaBíbliaApócrifos
Nenhum comentário:
Postar um comentário