Ato organizado pela ONG Rio de Paz, em 2017, no qual placas forma colocadas na praia de Copacabana com nomes de menores que morreram vítimas de balas perdidas nos 10 anos anteriores na capital fluminense (Tomaz Silva/Agência Brasil)
Naturalização
da morte de crianças desumaniza a todos
Narra o Evangelho de
Mateus a fuga da Família de Nazaré para o Egito, por ocasião da perseguição do
rei Herodes ao prometido Rei dos Judeus. Depois que os magos do Oriente foram
ao palácio ?" lugar até então óbvio onde deveria estar um futuro rei ?"
Herodes, vendo seu poder sob risco, coloca-se a perseguir e matar todos os
recém-nascidos e os menores de dois anos: tentou arrancar aquilo que era sua
ameaça pela raiz (cf. Mt 216). Essa narrativa é o que chamamos de história
exemplar: um recurso literário, muito comum na literatura judaica, que visa,
por meio de um causo, retomar tradições antigas importantes,
ressignificando-as.
O recém-nascido Jesus,
sob os cuidados de Maria e José, foi exilado de sua própria terra, para não ser
morto. Há duas histórias do Antigo Testamento que podemos perceber, inscritas
por trás dessa narrativa: a de José do Egito, que havia sido deixado por seus
irmãos para morrer, e que acabou sendo levado para ser escravo, depois
tornando-se motivo de salvação para os hebreus; e a história de Moisés que,
para não ser morto também num genocídio, havia sido deixado numa cesta por sua
mãe, no rio, a fim de que fosse salvo. Moisés foi o braço de Deus, para a
libertação dos hebreus da escravidão do Egito, além de ter sido o responsável por
muito contribuir para o nascimento da identidade daquele povo. O recém-nascido
Jesus, aos olhos do evangelista Mateus, é o novo José e, mais simbólico ainda,
o novo Moisés: "Do Egito chamei meu filho" (Os 11,1).
A família de Jesus
pôde fugir (literariamente, fundamental para a continuidade da história) da
perseguição. Segundo a narrativa, um sem número de outras famílias não puderam.
O dia 28 de dezembro, no calendário litúrgico católico, é dedicado à memória
destes santos inocentes, assassinados pelo apego ao poder dos poderosos, que se
ameaçam até pela fragilidade das crianças. São contados como mártires:
inocentes, não tiveram suas vidas poupadas; acabaram por contribuir para o
cumprimento da história da salvação, ao expor a crueldade do poder.
No Brasil, todos os
anos a história exemplar narrada por Mateus toma forma tragicamente. A
fracassada guerra ao tráfico condena à morte crianças, muitas vezes atingidas
enquanto brincavam. As chamadas "balas-perdidas", infelizmente,
sempre têm destino: pobres e pretos, jovens e crianças. É a força do Estado a
serviço da morte: um Estado que é sempre mínimo para os pobres e favelados;
muitas vezes, bem menor que o mínimo. Uma bala de fuzil capaz de assinar, de
uma vez só vez, duas crianças que faziam aquilo que deviam, brincar, num país
onde o governo atua para facilitar a importação de armas e munição, mas que
odeia a educação e a cultura.
São inocentes que têm
a vida roubada. E, por vida, compreendemos não apenas a capacidade de respirar.
São, também, todas as potencialidades; são histórias abruptamente
interrompidas. Ninguém merece ter sua vida tirada, independentemente de quantos
crimes possa ter cometido. Assassinar crianças e naturalizar isso é uma
crueldade que nos desumaniza a todos e todas. Um país que tem por prática
corriqueira assassinar suas crianças, e privar tantas outras de uma vida digna,
não tem futuro possível. É preciso destronar os Herodes; é preciso seguir a
estrela que aponta para a vida. Que a memória dos santos inocentes brasileiros
nos inspire a cantar, como Maria, a salvação: "[...] derruba os poderosos
de seus tronos e eleva os humildes [...]" (Lc 1,52).
*Felipe Magalhães Francisco é
teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de
poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com
Fonte:domtotal.com
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