Incra afirma que não pode cumprir por conta da suspensão da reforma agrária pelo governo Bolsonaro

Suzana Cássia de Moura decidiu replantar o jardim após incêndio ter destruído parte do Acampamento Boa Esperança, em Novo Mundo (MT) (Álvaro Rezende)
Daniel Camargos e Ana Magalhães| Fotos: Álvaro Rezende
A terra ainda estava coberta de cinzas quando Suzana começou a reconstruir o jardim da sua casa – um barracão de madeira e lona, sem portas nem janelas. Assim como as outras 100 famílias que vivem no acampamento Boa Esperança, em Novo Mundo, no norte de Mato Grosso, a casa de Suzana Cássia de Moura não tem abastecimento de água, energia ou rede de esgoto. O pouco que a sem-terra tinha foi destruído em agosto, quando o acampamento foi alvo de um incêndio que atingiu barracos, plantações e matou animais.
O fogo foi tão certeiro que os camponeses acreditam em incêndio criminoso. Eles acusam os herdeiros de Marcello Bassan, médico e fazendeiro morto em 2007, que reivindicam a posse da Fazenda Araúna, onde as famílias sem-terra estão acampadas há mais de 10 anos em um vaivém de ocupações, ameaças e ações de despejo.
Porém, em setembro do ano passado, a Justiça Federal concluiu que os 14,7 mil hectares da fazenda são propriedade da União e devem ser destinados à reforma agrária. A decisão poderia dar fim ao conflito, mas intensificou a disputa, pois há mais de um ano o Incra se nega a cumprir a ordem judicial.
Para o juiz federal substituto Andre Perico Ramires dos Santos, do Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF-1), a família Bassan fez uma "ocupação irregular" da Fazenda Araúna. O magistrado determinou que os fazendeiros desocupassem a área em 60 dias – prazo vencido em novembro de 2019. "Caso não seja realizada a desocupação voluntária no prazo acima assinalado, deverão efetuar a desocupação coercitiva. Fica desde já autorizado, caso necessário, o uso de força policial federal e estadual".

Até hoje, um ano e três meses após a sentença, nem os fazendeiros foram retirados, nem foi criado um assentamento da reforma agrária.
Violência fundiária
Depois de dez anos de despejos, ataques de pistoleiros e incêndios, o acampamento Boa Esperança tornou-se uma espécie de museu a céu aberto da violência fundiária brasileira. Carcaças retorcidas de carros e panelas com marca de bala se unem às gigantescas castanheiras tombadas pelas chamas e compõem um cenário de terra arrasada no acampamento, onde a resiliência e a reconstrução viraram rotina na última década.

Após a conclusão do TRF-1 de que a fazenda é da União, os sem-terra voltaram a ter esperanças de finalmente conquistarem um pedaço de terra. Mas os acampados sentem que a violência aumentou. Além do incêndio de agosto, as ameaças passaram a ser constantes, com provocações de funcionários do fazendeiro e intimidações recorrentes, segundo os sem-terra.
"É muita covardia. Os homens [funcionários do fazendeiro] vêm aqui na porteira, ameaçam e depois voltam", afirma Maria Lúcia Figueiredo, uma das moradoras do acampamento.
Outros camponeses relatam que os pistoleiros ficam rondando o acampamento – e até disparam tiros contra os barracos, como teria ocorrido em maio deste ano. Um áudio de Whatsapp enviado para um dos acampados diz que, se eles não deixarem a fazenda, vai acontecer "um piseiro" – ou seja, um massacre.

O advogado da família Bassan, Marcelo Bertoldo, afirma que tenta reverter a decisão da Justiça Federal. Em paralelo a isso, pede a reintegração de posse na Justiça Estadual, o que os acampados consideram sem lógica, pois a terra é requerida pela União. Sobre o incêndio de agosto, Bertoldo diz que as acusações são falsas e que a fazenda teria sido queimada pelos próprios acampados, a quem atribui episódios de violência. O advogado também nega que a família tenha contratado pistoleiros, queimado carros e ameaçado moradores.
Omissão do Incra

Os dois documentos, aos quais a reportagem teve acesso, são assinados por Ivanildo Teixeira Thomaz, então superintendente do Incra em Mato Grosso, indicado político do deputado federal Nelson Barbudo (PSL-MT) – um aliado do presidente Jair Bolsonaro que, em março, disse em vídeo publicado no seu Facebook ser contra à criação de assentamento na Fazenda Araúna.

O Incra afirmou, em nota, que não cumprirá a determinação pois, caso a sentença seja revertida em instância superior, "não poderá garantir a inviolabilidade do imóvel" – que tem benfeitorias avaliadas em R$ 16 milhões –, o que traria "prejuízos severos para o erário". O órgão afirmou também que não sofreu pressão política para tomar a decisão.

Procurados, o juiz André Perico Ramires dos Santos e a assessoria de imprensa do TRF-1 não responderam.
Desalento e resiliência
Pelos olhares e suspiros dos acampados, é possível perceber a angústia que paira pela incerteza do futuro e pela violência do passado. "É o segundo barraco meu que queimam", lamenta Renato Antônio Reis. Em 2015, a casa onde ele vivia com a família foi destruída pelo fogo após um despejo. Em agosto, as chamas novamente atingiram parte do barraco de madeira. "Perdi muita coisa que já tinha plantado e estava quase na hora de colher: pepino, melancia e abóbora", afirma.
Aos 44 anos, Reis diz que sempre trabalhou "em terra dos outros" e que quer um pedaço de chão para plantar e sobreviver. "Trabalhando para os outros a gente fica velho e não tem nada. Até que chega um dia que não aguenta trabalhar mais e nem aluguel pode pagar."
A vida dos acampados contrasta com a prosperidade do norte do Mato Grosso, que se destaca pelo crescimento econômico na esteira das exportações de soja, milho, feijão e algodão. As cidades do Nortão do Mato Grosso, como é conhecida a região, são repletas de outdoors com fotos de Bolsonaro e mensagens de apoio ao presidente. Distante dessa euforia econômica e política, no Acampamento Boa Esperança, uma criança de 8 anos ficou encantada quando viu uma garrafa pet congelada. "Isso é gelo, papai?", perguntou. Desde que nasceu, ela presenciou despejos e viu barracos serem queimados, mas não conhecia o gelo.

Repórter Brasil
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