segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

SOBRE BODES EXPIATÓRIOS E A EXIGÊNCIA DA CONVERSÃO

Em meios cristãos, não é difícil perceber que no discurso os bodes expiatórios persistem (Unsplash/Jeswin Thomas)Nomear algo ou alguém que receba nossa culpa nos alivia da responsabilidade
A expressão "bode expiatório" é bastante conhecida. Ela surge em nosso linguajar corriqueiro, sempre que alguém arca com as consequências – geralmente negativas – de uma ação feita por outrem. A expressão nasceu de um costume ritual do antigo Israel. Sabe-se que a religião judaica, dos tempos bíblicos, tinha o aspecto sacrificial como elementar. O oferecimento de sacrifícios é um traço bastante presente em todas as religiões antigas e com o judaísmo não é diferente.
Do judaísmo antigo, uma das festas mais importantes do calendário é o Yom Kippur – "Dia da Expiação". Ainda hoje, judeus e judias em todo o mundo celebram essa importante festa, mas de um jeito diferente daquele legislado em Levítico 16. É neste texto onde encontramos a referência ao bode expiatório. Ele é o que passa a carregar os pecados de todo o povo; como parte do rito, ele era abandonado no deserto. O bode era aquele que assumia a consequência dos pecados do povo, enquanto no templo se celebrava o perdão.
Fora de um contexto existencial-religioso, a prática ritual pode ficar esvaziada de sentido e, mais que isso, magicizada. Isso se dá quando o aspecto religioso perde o caráter ético, tão fundamental para grande parte das tradições religiosas. No caso específico da tradição sacrifical do judaísmo, o risco era o de um laxismo ético: se basta um rito expiatório para me justificar diante de Deus, então não há a necessidade de algum esforço de conversão e mudança de práticas.
Os profetas bíblicos eram ferrenhos críticos de uma religião sem ética. Criticavam, com razão, o cumprimento rigorista das leis religiosas de expiação que não eram seguidas levando-se em conta a mudança de vida e o comprometimento existencial com a transformação. O profeta Oseias (6,6) foi lapidar em manifestar o querer do Deus de Israel: não interessavam os sacrifícios; o que interessava ao Senhor era a prática da misericórdia. Jesus, segundo nos traz o Evangelho de Mateus, repete aquilo que nos ensinava Oseias.
Passadas as práticas antigas das religiões sacrificiais, o cristianismo, que tem o Antigo Testamento por sagrado, não sacrifica cordeiros, tampouco leva bodes aos desertos. Mas, em meios cristãos, não é difícil perceber que no discurso os bodes expiatórios persistem: muitas vezes ganham ares pessoais; noutras, algo do imaginário mágico, supersticioso. Um dos bodes expiatórios preferidos de alguns círculos cristãos, sem dúvidas, é o comunismo. Em nossa atualidade hiper reacionária, tudo o que está fora da bolha do ideal ultraconservador é considerado como comunista. Agora, até mesmo a pandemia da Covid-19 é culpa do comunismo, esse fantasma que nada nesse mundo consegue enviar para o além.
Nomear algo ou alguém que receba a culpa, aliviando-nos de nossa própria responsabilização, é uma prática social que parece ser o caminho mais fácil. A crise do cristianismo não é culpa do comunismo, do globalismo, do Concílio Vaticano II, nem da modernidade, como vociferam os reacionários ultraconservadores. Essa crise é consequência de caminhos assumidos que, muitas vezes, estavam longe do ideal evangélico que nos propõe Jesus. O cristianismo tem, em seu horizonte, a exigência da conversão ao Evangelho como um imperativo para nossos tempos. Essa conversão só será possível se o cristianismo reconhecer seu próprio papel na conjuntura cultural em que estamos, bem como seus próprios fracassos e descaminhos. Sacudir terços não pode nos salvar: nesse caso, Maria não pode, mesmo, passar na frente.
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com

 Fonte: domtotal.com


 

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