Em meios cristãos, não é
difícil perceber que no discurso os bodes expiatórios persistem
(Unsplash/Jeswin Thomas) Nomear algo ou alguém que receba
nossa culpa nos alivia da responsabilidade
A expressão "bode
expiatório" é bastante conhecida. Ela surge em nosso linguajar
corriqueiro, sempre que alguém arca com as consequências – geralmente negativas
– de uma ação feita por outrem. A expressão nasceu de um costume ritual do
antigo Israel. Sabe-se que a religião judaica, dos tempos bíblicos, tinha o
aspecto sacrificial como elementar. O oferecimento de sacrifícios é um traço
bastante presente em todas as religiões antigas e com o judaísmo não é
diferente.
Do judaísmo antigo,
uma das festas mais importantes do calendário é o Yom Kippur –
"Dia da Expiação". Ainda hoje, judeus e judias em todo o mundo
celebram essa importante festa, mas de um jeito diferente daquele legislado em
Levítico 16. É neste texto onde encontramos a referência ao bode expiatório.
Ele é o que passa a carregar os pecados de todo o povo; como parte do rito, ele
era abandonado no deserto. O bode era aquele que assumia a consequência dos
pecados do povo, enquanto no templo se celebrava o perdão.
Fora de um contexto
existencial-religioso, a prática ritual pode ficar esvaziada de sentido e, mais
que isso, magicizada. Isso se dá quando o aspecto religioso perde o caráter
ético, tão fundamental para grande parte das tradições religiosas. No caso
específico da tradição sacrifical do judaísmo, o risco era o de um laxismo
ético: se basta um rito expiatório para me justificar diante de Deus, então não
há a necessidade de algum esforço de conversão e mudança de práticas.
Os profetas bíblicos
eram ferrenhos críticos de uma religião sem ética. Criticavam, com razão, o
cumprimento rigorista das leis religiosas de expiação que não eram seguidas
levando-se em conta a mudança de vida e o comprometimento existencial com a
transformação. O profeta Oseias (6,6) foi lapidar em manifestar o querer do
Deus de Israel: não interessavam os sacrifícios; o que interessava ao Senhor
era a prática da misericórdia. Jesus, segundo nos traz o Evangelho de Mateus,
repete aquilo que nos ensinava Oseias.
Passadas as práticas
antigas das religiões sacrificiais, o cristianismo, que tem o Antigo Testamento
por sagrado, não sacrifica cordeiros, tampouco leva bodes aos desertos. Mas, em
meios cristãos, não é difícil perceber que no discurso os bodes expiatórios
persistem: muitas vezes ganham ares pessoais; noutras, algo do imaginário
mágico, supersticioso. Um dos bodes expiatórios preferidos de alguns círculos
cristãos, sem dúvidas, é o comunismo. Em nossa atualidade hiper reacionária,
tudo o que está fora da bolha do ideal ultraconservador é considerado como
comunista. Agora, até mesmo a pandemia da Covid-19 é culpa do comunismo, esse
fantasma que nada nesse mundo consegue enviar para o além.
Nomear algo ou alguém
que receba a culpa, aliviando-nos de nossa própria responsabilização, é uma
prática social que parece ser o caminho mais fácil. A crise do cristianismo não
é culpa do comunismo, do globalismo, do Concílio Vaticano II, nem da
modernidade, como vociferam os reacionários ultraconservadores. Essa crise é
consequência de caminhos assumidos que, muitas vezes, estavam longe do ideal
evangélico que nos propõe Jesus. O cristianismo tem, em seu horizonte, a
exigência da conversão ao Evangelho como um imperativo para nossos tempos. Essa
conversão só será possível se o cristianismo reconhecer seu próprio papel na
conjuntura cultural em que estamos, bem como seus próprios fracassos e
descaminhos. Sacudir terços não pode nos salvar: nesse caso,
Maria não pode, mesmo, passar na frente.
*Felipe Magalhães Francisco é
teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de
poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com
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