Nós
cristãos não somos herdeiros de uma fé mágica, mas de uma tradição profética,
que implica em compromisso ético com a vida do outro (Unsplash/Nathan Mullet)
Um mundo encantado com anjos e
demônios têm mobilizado os esforços dos cristãos e não sobra vigor para
enfrentar os perigos concretos que ameaçam a vida real
"Davam
ouvido a ele, pois desde muito tempo os fascinava com suas feitiçarias"
(At 8,11)
Em vez da simplicidade
da vida cristã, a pompa litúrgica. No lugar da pregação do evangelho, estão
novenas, correntes e outras práticas piedosos. Em vez do seguimento de Jesus de
Nazaré, Deus encarnado na história, nota-se a devoção a santos, anjos e à Nossa
Senhora. Da mira do olhar somem as preocupações éticas e ganham visibilidade a
luta contra inimigos espirituais. Em vez da ciência e das razões da fé,
encontramos obscurantismo e superstições. A exotização da fé é uma árvore de
frutos amargos, cujas raízes estão fincadas em tempos longínquos. Quando a
ciência era precária e mais se aproximava de bruxarias e encantos que de
evidências científicas, fenômenos extraordinários tais como curas, milagres e
prodígios eram atribuídos a forças quase sempre divinas. Nos evangelhos
sinóticos, o próprio Jesus aparece como um taumaturgo, uma espécie de
curandeiro que age em nome do Deus que ele representa. Testemunhos múltiplos
são relatados nesse sentido: curas de cegos, coxos, surdos; reanimação de cadáveres;
expulsão de demônios e de espíritos imundos... Uma força divina (exousia)
emanava de Jesus e sua ação libertadora era sentida por quem dele se
aproximava.
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Sabemos que os
evangelhos não são relatos exatos dos acontecimentos ou uma espécie de crônica
dos fatos, mas sim um testemunho de fé da comunidade dos primeiros cristãos. As
curas, milagres e prodígios atribuídos a Jesus são sinais comunicativos do amor
do Pai, que pela ação do Espírito, quer trazer vida a todos. Assim, como
relatos de fé, esses textos precisam ser lidos com muito cuidado para que a fé
cristã não se reduza a uma porção mágica ou a uma senha secreta que desencadeia
fenômenos que a ciência não explica. A fé cristã seria diminuída a um efeito
pragmático: trazer bem-estar, prosperidade e cura imediatos para o crente. Deus
seria uma espécie de mercador que possui graças infinitas armazenadas no
estoque de bênçãos, e ele as distribuiria a seu bel prazer, na maioria da vezes
coagido por rezas fortes, devoções milenares, ritos religiosos e outras
práticas piedosas. Isso explicaria o sucesso de alguns e o fracasso de outros
crentes no empreendimento de alcançar o favor de Deus. Uns têm mais fé, mais temor,
mais piedade, ou conhecem fórmulas mais aprimoradas para obter eficácia em suas
preces. Com essa compreensão da fé cristã, o cristianismo não se diferencia da
magia. Deus se transforma em um mágico voluntarioso, que faz o que quer para
quem ele quer, dando a alguns um retorno positivo e ignorando a necessidade de
outros.
Essa compreensão da fé
carrega também a marca da mercantilização. O cristianismo se configura como
religião do mercado; basta negociar com Deus as necessidades urgentes em troca
de algo que lhe apeteça, que pode ser desde uma oferta em dinheiro até uma
abstenção alimentar ou um gesto de piedade. As chamadas "graças de
Deus" são negociadas em forma de correntes de libertação, promessas,
novenas, oferendas e atos de fé, quase sempre exigindo a renúncia de bens
materiais em prol de benefícios muito maiores. Essa relação mercantil aproxima
o Deus de Jesus dos deuses pagãos da antiguidade, quando se entendia que as
oferendas aplacavam a ira dos mesmos e alcançavam assim favores imerecidos.
Em tempos de crise –
carestia, inflação crescente, desemprego, violência, doença, falência de
empresas e estado mínimo –, a religião se transforma na única via de consolo
dos pobres. A mulher agredida pelo marido acredita que Deus vai lhe dar
livramento do mal. O desempregado espera que a bênção da carteira de trabalho
lhe restitua a colocação no mercado. Os doentes e moribundos rezam para que um
milagre aconteça – até porque eles não têm acesso a tratamentos adequados para
recuperar a saúde. Os negacionistas duvidam da ciência, rejeitam as vacinas em
plena pandemia. Os jovens, sem perspectiva futura, buscam grupos conservadores
que os arrancam da dureza da vida e lhes colocam numa bolha de fé. Em todo
canto, o sofrimento impera e a fé se torna um placebo contra o tédio, a dor e o
desespero.
Não há nada de errado
em buscar na fé um sentido para a vida. É próprio das religiões descortinar um
horizonte de sentido e possibilitar esperanças antes não vislumbradas. Triste,
porém, é ver como a fé cristã tem sido manipulada por grupos de interesse para
impedir a luta contra o mal real, criando inimigos espirituais e do além, numa
batalha que canaliza toda a energia do crente. Um mundo encantado com anjos e
demônios têm mobilizado os esforços dos cristãos e não sobra vigor para
enfrentar os perigos concretos que ameaçam a vida real. É bem mais fácil lutar
contra satanás e sua trupe de espíritos impuros que enfrentar o descaso do
governo com a sociedade no campo da saúde, por exemplo. É mais confortador
imaginar que Deus vai arranjar um emprego para o filho do que incentivá-lo a
enfrentar a imensa fila dos desempregados. É menos constrangedor fazer uma
oferta generosa na igreja para que Deus liberte o marido violento do vício do
álcool do que passar a tarde na delegacia das mulheres deixando expostos os
dilemas de seu relacionamento amoroso. Participar do cerco de Jericó que
prometem quebrar os grilhões da depressão é mais prazeroso do que enfrentar um
triste e doloroso processo de cura da psique humana.
O problema é que,
nesse mundo encantado no qual a fé cristã foi aprisionada, o Deus de Jesus
Cristo não tem lugar. O Deus a quem invocam e a quem recorrem tem o nome de
Jesus, mas as práticas mágicas que são praticadas negam as origens cristãs,
cujo alicerce é o mistério de um Deus encarnado na história. Quando Simão, o
mago, viu Pedro curando foi logo querendo o poder do Espírito para continuar
manipulando as consciências, relata os Atos dos Apóstolos (8,4-25). O autor dos
Atos – Lucas – mostra o descontentamento do pescador de Nazaré com a
possibilidade de transformar a fé em ritos mágicos poderosos. Também com Paulo,
um episódio semelhante se deu quando uma pitonisa andava atrás dele gritando e
falando no nome de Jesus (16,16-19). Apesar de os relatos escriturísticos
atribuírem curas e milagres aos primeiros seguidores de Jesus, em nenhum
momento esses fenômenos podem ser entendidos como magia ou uma força
particular. Tais fenômenos indicam que Deus está com seus seguidores e que
estes agem graças à sua força. Uma metáfora para mostrar como, pela dynamis da
fé, a vida em sua plenitude é reestabelecida.
Em tempos de crise
sanitária, quando todas nossas as seguranças parecem se dissolver como bolha de
sabão, é mais fácil negar a realidade e buscar esconderijo nas fendas de uma
religião alienante. Usar máscara, fazer distanciamento social, higienizar
constantemente as mãos e evitar aglomerações têm o alto preço da disciplina e
do cuidado com o outro. Já a alienação religiosa é reconfortante e consoladora.
Ela transfere para Deus a tarefa que é humana. Deus, no alto de sua
onipotência, fica obrigado a resolver nossos problemas e a gente descansa
tranquila no colo da religião. Nesse contexto, não há espaço para a profecia,
para o compromisso ético e para a organização popular, pois o Deus
todo-poderoso das alturas vai intervir e botar fim ao sofrimento.
Apesar de os fatos
mostrarem que Deus não vai resolver nossos problemas, pois ele não os resolveu
até hoje, as pessoas seguem se esquivando da realidade. Têm até presbíteros que
se prestam ao papel de gravar vídeo dizendo que não é à toa que a primeira
vacina contra a covid foi aplicada no dia 8 de dezembro, quando se celebra a
festa da imaculada conceição de Maria. Atribuem a ela e não à ciência, o
sucesso do imunizante. O que é preciso perguntar é por que motivo a mãe de
Jesus deixou milhões de pessoas morrerem primeiro para só depois agir
milagrosamente em favor da humanidade. Essa imagem de Maria, assim como a
imagem do Deus intervencionista, destoa totalmente do que ensina a fé cristã
que Deus é amor e, como disse Mateus, faz o sol nascer sobre bons e maus e
chover sobre justos e injustos (5,45). Seria ele capaz de sacrificar milhões de
vidas, para só depois de muita prece ter sua ira aplacada e olhar com benevolência
para a humanidade? Essa é uma caricatura de mal gosto do Deus de Jesus. Nós
cristãos não somos herdeiros de uma fé mágica, mas de uma tradição profética,
que implica em compromisso ético com a vida do outro, de quem somos irmãos
graças à filiação divina. Não há reza brava nem fórmula mágica que obrigue Deus
a agir quando a tarefa da ação é nossa. Diante da comunidade faminta, os
discípulos sugeriram mandar para casa toda aquela gente desamparada. Lucas
colocou na boca de Jesus uma frase muito importante: "Dai-lhes vós mesmos
de comer!" (Lc 9,13). Em vez de cada um rezar para Deus lhe dar a comida,
cabia-lhes a tarefa de cuidar do outro em suas necessidades mais urgentes. Ou
encaramos que o mal real exige de nós atitudes de coragem e solidariedade ou não
somos seguidores de Jesus. Esse mundo encantado de anjos e demônios já alienou
demais. É hora de rasgar o véu que encobre esse fetiche religioso e lhe dá ares
de fé cristã. A exotização da fé tem um preço alto a pagar: forma um bando de
privilegiados que arrogam para si méritos diante de Deus e comete o assassinato
da gratuidade divina. É a morte do Deus de Jesus Cristo.
*Solange Maria do Carmo, graduada,
mestre e doutora em Teologia pela FAJE. professora do ISTA e da PUC Minas.
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