Padre
Julio Lancellotti vai até viaduto para retirar pedras colocadas pela prefeitura
(Henrique Campos/ONU)
A marreta de Júlio Lancelotti
encontra-se afinada com o melhor da tradição profética, aquela à qual pertence
Maria Clara
Bingemer
Muitos já ouviram falar
no martelo de Nietzsche. Trata-se do penúltimo livro do famoso filósofo alemão,
escrito pouco antes do perder a razão. O título remete a uma ópera de
Wagner, Crepúsculo dos ídolos, que tem como subtítulo "Como
filosofar com o martelo".
A obra consiste em uma
síntese de toda a obra do filósofo, que tem ao fundo uma declaração de guerra
contra os ídolos antigos e novos do Ocidente, que obscurecem a mente humana com
ilusões, tais como equívocos e tendências várias do pensar moderno e seus
representantes. O martelo ou marreta nietzschiano pretende destroçar esses
ídolos diversos, assim como, tocando-os e destrinchando-os com sua acurada
crítica, comprovar que são ocos e vazios, carentes de consistência.
Aqui e agora, não é do
martelo de Nietzsche que pretendo falar, embora a metáfora possa aplicar-se ao
caso. O tema desta crônica é uma marreta empunhada não por um filósofo, mas por
um sacerdote católico: o padre Júlio Lancelotti, coordenador da pastoral do
povo da rua da diocese de São Paulo. Figura presente e incansável no
atendimento aos moradores de rua, por ele chamados de irmãos, o padre aparece
todos os dias nas redes sociais servindo misericordiosamente os pobres e ao
mesmo tempo denunciando toda e qualquer instância que ameace prejudicá-los e
aumentar ainda mais seu sofrimento.
Foram já inumeráveis as
vezes em que o padre Lancelotti postou fotos dos irmãos de rua, no rigor do
inverno paulistano, sendo atacados com jatos de água fria, a fim de desocuparem
espaços públicos; ou do rapa passando e confiscando todos os pertences com que
os moradores da rua armavam sua precária habitação para passar a noite. Desta
vez, a denúncia teve como personagens uma série de pedras pontiagudas que foram
postas sob um viaduto situado no bairro do Tatuapé, na zona leste da cidade, e
que pretendia evitar que moradores de rua colocassem colchões no local.
Padre Júlio
primeiramente exibiu fotos das pedras que encheram as redes sociais deixando
perplexos os internautas. Com palavras indignadas, denunciava o gesto cruel que
retirava dos sem teto o único lugar onde poderiam descansar seus corpos mal
alimentados e maltratados: o chão debaixo do viaduto, ao abrigo dos carros que
transitam na via pública.
Em seguida, porém,
resolveu fazer algo mais concreto: com uma marreta na mão passou a destruir e
arrancar as pedras ali colocadas. E explicava seu gesto como pretendendo
destruir as "pedras da injustiça". Sua atitude profética e indignada
inspirou fotógrafos e cartunistas vários. Os desenhos do padre com a marreta na
mão derrubando as pedras encheram as redes e testemunharam como este gesto
traduzia os sentimentos de muitos. O corajoso gesto do sacerdote era portador
da indignação em que hoje vivemos neste país, que nos faz todos os dias acordar
com vontade de empunhar uma marreta e destruir as pedras da opressão que se
interpõem entre os cidadãos brasileiros, sobretudo os mais pobres, e seu
direito à vida digna e plena.
O gesto e o
comportamento de Júlio Lancelotti certamente não se coadunam muito com o
estereótipo que se tem de um padre. Espera-se que o mesmo se atenha ao interior
da igreja ou da paróquia, não se imiscuindo nos assuntos seculares ou
materiais, cuidando apenas das almas dos fiéis.
Sucede que a tradição
judaico-cristã, da qual o padre Lancelotti é digno representante, sempre teve
entre seus quadros profetas que denunciaram em alto e bom som os dois grandes
males que impediam o povo de viver plenamente a aliança com seu Deus: a
injustiça e a idolatria. E inúmeras vezes aparecem na Bíblia hebraica as chamadas
de atenção que esses mesmos profetas faziam contra os ídolos que tinham pés de
barro e eram ocos como os que Nietzsche queria destruir com seu martelo. Na
Bíblia Cristã, Jesus de Nazaré, que com tanto carinho tratava publicanos e
pecadores, aparece no Templo de Jerusalém usando o chicote para repudiar o uso
que fazem da casa de oração para comércio e lucro indevido.
A marreta de Júlio
Lancelotti encontra-se, portanto, afinada com o melhor da tradição à qual
pertence. Golpeando as pedras, chamou a atenção da opinião pública e a própria
prefeitura tomou providências para retirá-las, concordando que o fato de as
colocar havia sido equivocado. O espaço público voltou a abrir-se para os
pobres. Se é escandaloso que não tenham lugar para viver e devam recorrer à rua
para isso, que pelo menos possam ali colocar seus colchões e descansar seus
corpos.
Ao padre Júlio vai nosso
agradecimento por nos recordar constantemente que o Evangelho é um fogo que
arde e queima, e não um analgésico que disfarça as dores e acalma falsamente as
consciências.
Fonte:domtotal.com
Vamos juntos orar sem Cesar pra Jesus cristo boa orientar no caminho do bem ;
ResponderExcluirBUENOS DIAS! SALUD PADRE JULIO
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