Jesus toma pela mão para libertar pessoas
de demônio, gesto típico da salvação de Deus (Unsplash/Ave Calvar)
O texto que nos
inspira hoje é Mc 1,29-39. Trata-se do primeiro dia de ação evangelizadora de
Jesus, iniciada na cidade de Cafarnaum, com sua entrada na sinagoga, onde ele
exorciza um demônio que o reconhece como Santo de Deus (Mc 1,24). Jesus é
reconhecido como exorcista, cena que se repete no texto que iremos refletir.
Saindo da sinagoga,
Jesus entra na casa de Pedro, com ele e os outros três discípulos que ele havia
chamado para segui-lo. Esse gesto tem um significado importante, que veremos
mais adiante. A sogra de Pedro estava enferma, com febre alta. Pedro, segundo a
tradição, era casado. Um dos apócrifos, Atos de Pedro, conta que
ele tinha uma filha de nome Petronília. Ela foi dada em casamento a um jovem
fazendeiro de nome Ptolomeu. Sua história é intrigante e está relacionada com o
pensamento gnóstico encratita, o qual pregava que a salvação viria pela
virgindade (cf. o nosso livro: O outro Pedro e a outra Madalena segundo
os apócrifos. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 43-46).
Bom, para a nossa
reflexão, proponho as perguntas: Qual o significado dessa ação de Jesus ao
curar a sogra de Pedro? Que relação existe entre o demônio e a doença? Qual o
sentido do sofrimento humano?
O sair da sinagoga de
Jesus é o mesmo que dar as costas ao lugar que não produz vida, mas, sim, laços
de morte de uma religião que atrela as pessoas à Lei. Entrar na casa com os
quatro primeiros discípulos é a demonstração de que a nova comunidade nasce na
casa e não na sinagoga, mais tarde, a igreja familiar. Na sinagoga de Cafarnaum
havia alguém possuído pelo demônio, assim como a sogra de um dos que seria o
mais importante dos apóstolos, Pedro. Ela estava doente, paralisada. Sua
enfermidade, conforme a mentalidade da época (1,34; 3,10-11; Lc 13,10-17),
tinha relação direta com a possessão diabólica. A febre alta era o mesmo que
estar possuído, pois ela era um dos tipos de demônio que queima e mata (Lc
4,39; Jo 47,52).
Ao tomar a mulher pela
mão, Jesus age, pela segunda vez, como exorcista, fazendo um gesto que vence e
expulsa o demônio. A cena é também a de um milagre. Diz o texto que,
imediatamente, ela ficou curada, levantou-se e começou a servir os discípulos e
Jesus. Note-se que foi Jesus que, primeiramente, agiu com o cuidado em relação
a uma mulher doente. Lembre-se que era dia de sábado. Não era permitido curar
e, muito menos, expulsar demônios nesse dia, ainda mais que fosse de mulher.
O verbo grego egheiro,
em português levantar-se, é o mesmo usado para falar da ressurreição Jesus (Mc
16,6). Em outras passagens de Marcos, Jesus fez esse mesmo gesto de tomar pela
mão para libertar pessoas de demônios (Mc5,41; 9,27; 2,9-11; 10,49). Isaías e o
Sl 73 nos diz que o tomar pela mão é o gesto típico da salvação de Deus (Is
41,13; 42,6; 45,1; Sl 73, 23-24). Libertada, a sogra de Pedro passou a fazer
parte da comunidade. Pode parecer insignificante a informação de que ela
começou a servi-los, mas não o é. Rabinos não se deixavam ser servidos por
mulheres. Quem serve é discípulo. Outro detalhe, para Marcos, é que Jesus
inicia sua vida pública com uma mulher e termina com outra, formando uma bela
inclusão (Mc15, 40-41.47; 16,1-8): a sogra de Pedro e Madalena.
Outra cena
interessante nesse evangelho é o fato de que, no dia seguinte, não mais no
sábado, uma multidão de enfermos e endemoniados se aglomerou na porta da casa
de Pedro para ser curada. Essas duas cenas, a cura da sogra e as outras curas,
nos colocam em contato com a questão do sofrimento humano. Viver é sofrer, seja
pela debilidade do corpo, por questões psíquicas, e, sobretudo, por questões
sociais. O não acesso aos direitos fundamentais do ser humano é uma das grandes
causas do nosso sofrimento. O evangelho de Marcos tem clareza quanto a isso.
Ele organiza as informações sobre Jesus na perspectiva do enfrentamento dos
poderes que geram a opressão religiosa, política, social e econômica. Jesus
devolve a vida aos doentes e sofredores, de modo que eles estejam a serviço do
Reino de Deus.
*Doutor em Teologia Bíblica pela
FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto
Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira
de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e
coautor de quatorze. Últimos livros: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer:
da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa
Morte (Vozes, 2019). Coautor de: A releitura do Deuteronômio nos evangelhos.
In: KONINGS, Johan; SILVANO, Zuleica Aparecida. (Org.). Deuteronômio: Escuta,
Israel. 1ed.São Paulo: Paulinas, 2020, v. 1, p. 187-230. Inscreva-se no nosso
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Fonte:domtotal.com
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