O impulso para destruir o outro pode advir do instinto de autopreservação, seja pela defesa, seja para alimentar-se do outro ser (Unsplash/Zdenek Machácek)
O instinto de autopreservação pode
culminar num fechamento radical do 'eu', princípio do mal
Se considerarmos o
humano como resultante da evolução natural, ainda que concebendo aí a
intervenção criadora de Deus, deveremos confessar que ele também é animal e
guarda consigo suas origens de modo complexo. Assim sendo, mesmo os sentimentos
e emoções daquele que dizem destacar da natureza pela sua racionalidade talvez
encontrem similaridade com os outros seres vivos. Dito isso, vale olhar para a
raiva ou ira como uma evolução ou complexificação de um instinto que leva
outros seres a atacar.
No reino animal,
ataca-se geralmente por dois motivos: defender-se do outro, o que leva uma certa
carga de medo, ou comer. De fato, o impulso para destruir o outro pode advir do
instinto de autopreservação, seja pela defesa (de si, do seu grupo, do que lhe
mantém bem e vivo e pode garantir sua perpetuação), seja para alimentar-se do
outro ser. Em ambos os casos, não há valoração moral, não se trata de algo bom
ou mal, mas faz parte da luta pela (própria) vida.
Já com o ser humano,
esse instinto vai além da manutenção da própria vida e integridade, chegando à
proteção do eu (ou ego), mesmo no que tange a
questões subjetivas ou sociais. Se um animal pode destroçar o outro para
come-lo – e por isso o ataca –, às vezes na vida em sociedade um parece
querer comer o outro a fim de se manter no mercado de trabalho e garantir não
só o alimento, mas tudo do que se alimenta como diversão e arte. Pode-se matar
para garantir consigo aquilo que traz alguma sensação de completude e
bem-estar.
Justamente por
secundar outra vida em detrimento dos bens é que a ira humana pode ganhar
valoração moral, porque consiste na afirmação absoluta de si em desfavor do
outro. Essa falta de reconhecimento da importância e dignidade da alteridade
esgarça o tecido social ao passo que também viola o princípio humano de
realização de si, o que se dá na vivência do amor, do encontro. Aqui
encontramos o princípio do mal: a afirmação de si que chega ao desprezo do
outro.
Com efeito, o ser
humano caminha numa tensão entre fechar-se e esvaziar-se, entre o
individualismo exacerbado e o coletivismo alienante. Os dois são ruins. O fato
é que o indivíduo se realiza no encontro, afirmando-se em sua singularidade e
acolhendo o outro. Uma pessoa sem os sentidos não conseguiria formar a
consciência, não saberia sequer de si se não soubesse dos demais. O não-eu
gera o eu, poderíamos dizer filosoficamente. A personalidade também se
funda na vivência da criança pelo olhar que recebe dos pais. Entretanto, se não
se distinguir, não se afirmar em alguma medida, ela se dissolverá, irá se
despersonalizar, deixará de ter um eu. Quando ela dá conta de
afirmar-se, consegue reconhecer o que está para além dela. Filosoficamente, o
inverso acontece, o eu gera o não-eu.
Ademais, não é
possível relação quando um é apenas extensão do outro. Precisa-se no mínimo de
dois. Sem distinção não há relação. Portanto, o caminho saudável está em
reconhecer-se e às suas próprias riquezas ao passo que se pode dizer que o
outro também é valioso e capaz de lhe receber. Em outras palavras: porque o
outro é digno em si mesmo, ele é digno de mim, que também tenho dignidade.
Trata-se de ver a si e ao outro como dons. Não é amar a si primeiro para depois
amar o outro. Não tem hierarquia temporal. Cabe amar o outro e a si. Ou, como
diz Jesus, amar o próximo como a si mesmo.
Quando se fala,
portanto, do princípio do mal, fala-se do rompimento com essa lógica do amor,
do fechamento do indivíduo em si – o que não é amor por si, mas egoísmo.
O indivíduo mal também não se ama, porque não chega a se reconhecer como dom.
Ele busca fora o que não encontra dentro. É por isso que ele se lança sobre as
coisas, para ser maior que elas, para se impor sobre elas, chegando até mesmo a
acabar com elas. Como um faminto, ele quer devorá-las, destruí-las. Outras
vezes, assim age não apenas para se impor, mas por medo. Ele quer destruir tudo
o que se lhe apresenta como ameaça, que revele sua fragilidade e pobreza.
Isso talvez explique
(mas não justifica) o homem que agride a esposa, pois não vê sua dignidade,
reduzindo-a a objeto de sua saciedade. Às vezes se sente ameaçado de traição
porque, no fundo, sabe que ela pode encontrar alguém melhor, teme o abandono.
Isso quem lhe aponta é seu vazio e limitação (que nega, mas está sempre à sua
frente). O fechamento em si, gerador do mal, também diz porque alguém pode
agredir o outro tendo em vista sua orientação sexual, etnia ou até pertença a
outro time. O distinto é visto como ameaça ou como desejo. Algo em si é
suscitado diante do outro, gerando um conflito que, por não ser resolvido,
culmina na decisão por diminui-lo ou mesmo eliminá-lo. O problema nunca está em
quem é agredido, mas no agressor.
O mal não é externo ao
indivíduo, ele nasce no coração do humano. Tudo começa pequeno, num flerte com o mal, o que às vezes se dá numa omissão. Não é só
o Reino de Deus que começa pequeno como grão de mostarda e depois se torna
grande. Ninguém começa grandes atrocidades da noite para o dia. O que acontece
é que comumente as pessoas não admitem que estejam fazendo o mal. Caminha-se na
má-fé, criando escusas para continuar na mesma prática. Daí é fácil culpar o
outro pelo erro que é seu ou até mesmo atribuir uma origem mística, dizendo que é obra do
diabo. A visão mágica de mundo ajuda a camuflar a falta de
responsabilidade com a própria vida. Aí a alienação se torna escolha. Há
pessoas que são más e mentem para si para continuar o sendo.
A agressividade e a
tendência à destruição podem ser movimentos naturais, como um impulso de
resistência e preservação, seja de si ou do grupo a que se pertença. Podem ser
corretas em inúmeras vezes, o que chamamos de legítima defesa. Contudo, quando
partem de uma absolutização do eu, que nega radicalmente a
alteridade, elas se tornam prática do mal. Por isso a fé apregoa como caminho
salvador o negar-se a si mesmo, tomar a cruz e seguir o Cristo. Quem não se
fecha em si tem a potência de transformar a ira em indignação, movimento
orientado pela promoção do direito e da justiça, que quer romper com o que
destrói e faz mal ao outro. Nesse caso, a pulsão de morte pode se torna
princípio de vida.
*Gilmar Pereira é mestre em
Comunicação e Semiótica, graduado em Filosofia e Teologia, possui estudos em
Fotografia e cursa Psicanálise. É professor, mestre de cerimônias e responsável
pela editoria de religião do portal Dom Total
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