Francisco
de Zurbarán, As Mães do Deserto Santa Paula
e sua filha Eustóquia, com São Jerônimo.
As
“Mães” do Deserto foram, de par com os Padres do Deserto, mulheres ascetas
cristãs que habitavam os desertos da Palestina, Síria e Egito nos primeiros
séculos da era cristã (III, IV e V). Viveram como eremitas tal como muitos
padres do deserto e algumas formaram pequenas comunidades monásticas. Eram
mulheres “embriagadas de Deus”[1] que, tal como os padres da Igreja,
viviam em permanente metanoia e radicalidade cristã,
escolhendo vidas reduzidas ao essencial e aproximando-se das fontes da
“sabedoria perene”[2].
Porque
as silenciou a Igreja, sendo elas também “discípulas” que seguiram Cristo?
Neste mês de fevereiro, e em antecipação da Quaresma, o Papa Francisco
convida-nos a pensar e rezar sobre o delicado problema da violência contra as
mulheres que, durante esta pandemia, se tem tornado ainda mais evidente, dada a
situação de stress e confinamento em que vivem as famílias. Francisco exorta a
que “os seus sofrimentos sejam considerados e escutados”. Afirma o Papa: “Onde
as mulheres são marginalizadas é um mundo estéril, porque as mulheres não só
dão vida, mas transmitem-nos a capacidade de olhar além, de sentir as coisas com o coração
mais criativo (…)”.
Sem
ser investigadora na área e sem ter grande acesso a documentação que é muito
esparsa – poucos livros estão publicados em língua portuguesa – este primeiro
trabalho é apenas uma chamada de atenção para a ignorância a que foram votadas
as Madres da Igreja, prometendo continuar a estudar logo que tenha acesso a
mais informação, nomeadamente ao livro The
Mothers of the Church: The Witness of Early Christian Women, de Mike Aquilina e Christopher Bailey.
A
minha estranheza quanto a esta problemática é de longa data, mas tornou-se bem
clara aquando da publicação da Pequena Filocalia (Paulinas, 2017), sobre o “encantamento pelo mistério de Deus”. Dos doze autores da tradição oriental
cristã (incluindo ortodoxa) publicados nesta colectânea – reunida no século
XVII e com textos dos séculos IV a XIV, começando em Santo Antão e indo até São
Gregório de Palamas –, não aparece nenhuma mulher.
O
antigo monaquismo cristão apresenta-se sob uma dupla modalidade, correspondente
a distintas vocações: a eremítica (a dos/as que viviam sós) e a cenobítica –
dos/as que escolhiam a vida comunitária. As Mães do Deserto também eram
conhecidas pelo nome de ammas (mães espirituais), termo
correspondente aos Padres do Deserto que eram os abbas,
devido ao respeito que eles e elas ganharam como professores e diretores
espirituais.
“Só a humildade pode salvar”
Sinclética
de Alexandria (iluminura no manuscrito Menológio, de Basílio II): “A humildade
é vitoriosa sobre os demónios.”
Os
padres e as madres do deserto eram conhecidos por escrever sentenças ou
pensamentos espirituais. Usava-se o termo “apotegma” (apophthegma) para designar as sentenças dos Padres do Deserto (apophthegmata Patrum). Também se usava o vocábulo rhêma (relato, acontecimento
significativo, palavra extraordinária de uma pessoa, ou a vida e o testemunho
de alguém importante). As recolhas dos rhêmata dos Padres do Deserto eram
recolhidas nos Gerontika, isto é, o conjunto das palavras dos
anciãos. Recolhas feitas por homens.
E
as Ammas? Uma das Mães do Deserto foi amma Sinclética de Alexandria (250-350). Nascida na
Macedónia de uma família proeminente, Sinclética emigrou para o Egito, cuidando
de uma sua irmã cega após a morte dos pais e irmãos. Deu aos pobres toda a sua
fortuna e entrou numa vida solitária com a irmã. Ensinou que na vida nascemos
três vezes: para a vida, para o batismo e, à medida que progredimos na vida
espiritual, para a disciplina, porque estamos a preparar a vida no céu. Teve 22
provérbios atribuídos a ela no conjunto dos Provérbios dos Padres do
Deserto reunidos em Historia Lausiaca [3] ou no Apophthegmata Patrum, isto é os Provérbios dos Padres do
Deserto. Este inclui 47 provérbios que são atualmente atribuídos às Mães
do Deserto.
Sinclética
afirmou ainda que nem o ascetismo, nem vigílias, nem qualquer tipo de
sofrimento são capazes de salvar. Apenas a verdadeira humildade pode fazer
isso. Usa um pensamento metafórico:
“Havia quem fosse capaz de
banir os demónios. Perguntou-lhes: ‘O que é que faz com que vocês se vão
embora? é o jejum?’ Os demónios responderam: ‘Nós não comemos ou bebemos.’ ‘São
as vigílias?’. Eles responderam: ‘Nós não dormimos.’ ‘Então que poder vos manda
embora?’. Eles responderam: ‘Nada nos pode vencer a não ser a
humildade’.” Amma
Sinclética conclui então: “Vêm como a humildade é
vitoriosa sobre os demónios.
A
profundidade do seu pensamento e dos escritos sobre espiritualidade era famosa
no seu tempo, exatamente porque muitas mulheres não eram letradas, sem acesso
ao universo escrito, apesar de se terem tornado mães espirituais de muitos
seguidores de Cristo.
“Muitos
vivem na montanha como na cidade”
“No
começo há uma boa dose de sofrimento para aqueles que estão avançando em
direção a Deus.” (Ilustração: Santa Irene assiste ao martírio das irmãs.
Miniatura do manuscrito Menológio de Basilio II
Sabe-se
de uma outra Amma, Teodora de Alexandria, que foi amma de
uma comunidade monástica de mulheres próxima de Alexandria. Antes disso, ela
tinha fugido para o deserto disfarçada de homem e juntou-se a uma comunidade de
monges. Foi procurada por muitos Padres do Deserto para conselho. Era portanto
“uma mulher sábia. Eis algumas das suas palavras:
No começo há um grande número
de batalhas e uma boa dose de sofrimento para aqueles que estão avançando em
direção a Deus e, depois, a alegria é inefável. É como aqueles que desejam
acender o fogo; no início eles são sufocados pela fumaça e choram, e por este
meio obtêm o que procuram […] portanto, nós devemos acender o fogo divino em
nós mesmos através das lágrimas e muito trabalho.
Há muitos que vivem nas montanhas
e se comportam como se estivessem na cidade; eles estão esperando o seu tempo.
É possível serem solitários em sua mente enquanto vivem em uma multidão; e é
possível para aqueles que são solitários viver no meio da multidão de seus
próprios pensamentos.
Que
propostas tão importantes para a vida ascética! Era uma vida ao alcance de cada
um/a desde que “chamados” e desejando essa radicalidade.
“Sou uma mulher, mas…”
Melânia,
a Jovem: aos 20 anos, ela e o marido renunciaram ao mundo e fundaram conventos
e mosteiros. Manuscrito Menológio de Basílio II.
Melânia, a Velha, era filha de um oficial romano. Ficou viúva muito jovem e mudou-se para
Alexandria, e depois para o deserto de Nítria. Aí encontrou vários Padres do
Deserto, seguindo-os em inúmeras viagens e ajudando-os, recorrendo ao seu
próprio dinheiro. Chegou a ir para a prisão por apoiá-los, depois de vários
Padres terem sido perseguidos por oficiais na Palestina. Mais tarde fundou um
convento em Jerusalém, que tinha cerca de 50 mulheres.
A
sua neta, Melânia, a Jovem, casou-se aos treze anos e teve dois filhos que morreram na juventude.
Quando tinha apenas 20 anos ela e o seu marido Piniano renunciaram ao mundo,
fundando conventos e mosteiros. Substituiu a sua avó quando está morreu.
De Sara do Deserto, outra Amma, ouvimos: Se eu orei a Deus todas as pessoas deveriam aprovar a minha
conduta, eu deveria encontrar em mim mesma uma penitente na porta de cada um,
mas eu devo sim rezar para que o meu coração possa ser puro para todos.
Os apotegmas de Sara do Deserto indicam que ela teve uma vida eremítica de cerca
de 60 anos. As suas respostas incisivas e oportunas para alguns dos homens
velhos que a desafiaram mostram uma personalidade bem forte e autónoma. De
acordo com uma história, dois homens anacoretas (monges e eremitas cristãos)
visitaram-na no deserto e decidiram: “Vamos humilhar esta velha mulher.”
Disseram-lhe: “Tenha cuidado para não se tornar vaidoso pensando em si mesmo”, dizendo implicitamente que aquela
não era uma via para as mulheres. Ela respondeu-lhes: “De acordo com a
natureza, sou uma mulher, mas não de acordo com meus pensamentos.”[4]
Uma “mestra” dos Padres do Deserto
Domnina da Síria, outra das
“Madres do deserto: “Ps primeiros tempos do cristianismo provocaram um
reconhecimento revolucionário da dignidade das mulheres.” Ilustração:
manuscrito Menológio de Basílio II.
Num livro escrito com Christopher Bailey, sobre as Madres da Igreja, Mike Aquilina descreve como os primeiros tempos
do cristianismo provocaram um reconhecimento revolucionário da dignidade das
mulheres[5]. Na Antiguidade Greco-Romana muitas
meninas eram submetidas a infanticídio por serem consideradas “um peso” para a
sociedade. Como surge então esta aversão às mulheres? Mike Aquilina escreve: “Mas quão bom era ter uma
menina? Se os pais tivessem sorte, a sua filha poderia casar-se com um homem
poderoso e fazer uma aliança útil para eles. Mais o mais certo era que eles
teriam que a alimentar e cuidar durante quinze anos ou mais e depois teriam que
pagar a algum esbanjador inútil um dote ruinoso para tirá-la das suas mãos. Não
admira que um dos adjetivos favoritos para indicar ‘filhas’ era ‘odiosas'”.
As meninas resgatadas do
infanticídio eram criadas frequentemente para se tornarem escravas sexuais e
para trabalhar em bordéis. Sabemos que na época de Constantino uma parte
considerável da população romana era cristã. Muitos cristãos dessa época
responderam a essa situação salvando as meninas da morte e da escravatura
sexual.
Mike Aquilina destaca
ainda a incrível contribuição de cristãs primitivas, como Macrina – a mulher que um dos Padres da Igreja
da Capadócia descreveu como “a Mestra”. Refere-se
ainda a outras mulheres tais como: Blandina, Perpétua, Felicidade, Helena,
Olímpia, Tecla, Inês, Macrina, Proba, Marcela, Paula, Eustóquia, Mónica e
Egéria. Foram muitas e por isso deixo aqui os seus nomes.
Segundo o cardeal Gianfranco Ravasi
(in: Páteo dos Gentios), S. João Crisóstomo, um dos mais
conhecidos Padres da Igreja afirmava que “estas mulheres lutaram melhor do que
os homens e receberam troféus mais esplêndidos”. Porque foi então silenciada
pela Igreja a voz destas mulheres até aos dias de hoje? Será que os séculos e
séculos da Igreja de Pedro se fixaram nos modos de viver da Antiguidade
Greco-Romana, esquecendo o tempo revolucionário das mulheres nos primeiros anos
do Cristianismo?
Proponho que pensemos nesta questão
ao longo do mês de fevereiro, correspondendo ao apelo do Papa Francisco: todos
sabemos que existe violência física e violência psicológica ou emocional sobre
as mulheres. A negação e o esquecimento da palavra e da voz das mulheres não
será também uma forma de violência?
Notas
[1] Isidro Lamelas. Padres do Deserto – Palavras de Silêncio. Universidade
Católica Portuguesa.
[2] Idem.
[3] A Historia Lausiaca é
um trabalho de arquivo dos escritos dos Padres do deserto feito em 419-420 por
Palladius da Galácia no tempo do imperador bizantino Teodósio.
[4] Apotegma é uma sentença breve, de
caráter aforístico. Tem como objetivo enunciar um conteúdo de natureza moral de
maneira extremamente sintética e eficaz. O apotegma tem traços comuns com a
anedota e com o provérbio, embora não sendo completamente redutível a essas
formas. (in Wikipédia). Ver também a entrada Mães do deserto.
[5] The Mothers of the Church: The
Witness of Early Christian Women (Huntington: Our Sunday Visitor,
2012) traduzido no Brasil pela Edições Loyola, com o título Madres da Igreja: O testemunho das cristãs primitivas.
Teresa Vasconcelos é professora
do Ensino Superior (aposentada) e participa no Movimento do Graal; contacto:
t.m.vasconcelos49@gmail.com
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