Reunião de líderes com o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, representante do bolsonarismo (Luis Macedo/Câmara dos Deputados)
A democracia brasileira vem sendo
estrangulada pouco a pouco
Muitas teorias têm
sido formuladas para explicar o bizarro fenômeno Bolsonaro e a hegemonia da
extrema direita no poder. São, no mínimo, incompletas. A última que ouvimos é
que o povo brasileiro está "adormecido". A culpa é do povo e de sua
alienação.
Essa é uma meia
verdade. Um psicologismo que começa generalizando a palavra "povo" e
termina reduzindo a complexidade política do momento em que vivemos. Não é bem
assim.
Temos uma tradição
autoritária de nossas elites endinheiradas que trabalham constantemente para
gerar um consenso antipopular disfarçado sob uma máscara de populismo.
Bolsonaro é a carantonha mais feia dessas elites e de seu sistema. Brecht dizia
que o fascismo é a verdadeira face do capitalismo.
Uma "oligarquia
liberal" bastante corrupta e corruptora comanda o espetáculo da política,
desde, pelo menos, a Ditadura de 1964-85, passando pela Nova República, hoje
falida completamente com a dominação da Câmara dos Deputados e do Senado pelo
bolsonarismo.
Houve quem esperasse
ingenuamente de Rodrigo Maia, presidente da Câmara, uma atitude digna e um
gesto heroico de iniciar um processo de impeachment ou uma CPI sobre a Covid
contra Bolsonaro, sobretudo depois do morticínio no Amazonas. Ora, Maia é a
própria essência do Sistema – "é" o Sistema – que envolve desde a
Rede Globo, a Fiesp, os grandes bancos, o "Mercado" e até o lucrativo
agronegócio.
Esperar de Rodrigo
Maia que se rebelasse seria o mesmo que aguardar semelhante atitude de Paulo
Guedes, o Posto Ipiranga que sustenta o regime bolsonariano.
Temos uma espécie de
"chavismo" de extrema direita, que tem engolfado a dita "direita
civilizada". Só falta incluir o STF e uma parte dos jornalistas (não as
empresas para as quais trabalham) que ainda sonham com democracia.
O "povo" não
está adormecido: uma parte apoia o capitão por seu suposto fundamentalismo
cristão, outra por acreditar em suas promessas de reforçar a segurança pública
(segurança de miliciano, é verdade, feita pela violência e brutalidade) e a
classe média branca, mesmo chocada com o genocídio e a falta de vacinas, o
tolera em função do seu ódio "antipetista" e na expectativa de que
Guedes tire o país da crise econômica e salve o capitalismo de consumo.
A vitória do
bolsonarismo no Congresso foi repugnante, mas compreensível. Bolsonaro foi
deputado (medíocre) por 28 anos, mas conheceu todas as artimanhas do "toma
lá dá cá", observou e participou de maracutaias, foi aliado de Paulo Maluf
no seu partido de então, e sabia muito bem como comprar os espertalhões do
templo da democracia.
Havia prometido acabar
com esse tipo de barganha, alguns moralistas o condenam por falsas promessas e
os falsos moralistas do tipo Sérgio Moro apontam o dedo em sinal de
desrespeito. Mas a manobra funcionou com a conivência de todos os membros da
"oligarquia liberal" (uma contradição em termos).
O projeto de poder de
Bolsonaro, que pode eventualmente durar mais seis anos, não é individual. A
direita costuma ser ruim de voto no país, desde pelo menos o tempo em que se
opôs a Getúlio Vargas. A velha UDN sofria desse mal: não tinha eleitores.
Inventou Carlos Lacerda, que recorria aos militares para dar golpes, inventou
Jânio Quadros, populista de direita, pseudomoralista que se atrapalhou ao
tentar dar um golpe bonapartista (acima dos partidos e das classes sociais). Após
seu período áureo na Ditadura, a direita tentou lançar Fernando Collor,
detonado após escândalos de corrupção e manifestações no país todo.
Sua mais recente
invenção, o capitão ignorante, mas espertalhão e mau caráter, está aí para
executar um projeto de destruição gradual da democracia, iniciado segundo o
modelo paraguaio do "golpe parlamentar".
O capitão atende às
demandas do Mercado: redução das conquistas trabalhistas (iniciada com Temer, o
Breve) e submissão gradual das instituições às exigências econômico-financeiras
dos banqueiros, rentistas e latifundiários, sem se preocupar com as
consequências sociais e ambientais. O mais espantoso é que a direita
"moderada", principalmente o PSDB, deu aval aos candidatos do governo
na Câmara e no Senado.
Para esse projeto
"dar certo", é necessário ter poder, e isso o capitão está
acumulando.
Não se enganem:
dominando o Congresso, Bolsonaro vai chegar sem impeachment em 2022, a menos
que a revolta popular seja de tal monta que os seus próprios aliados o abandonem.
Com sua falta de escrúpulos ao usar a caneta presidencial, não devemos duvidar
que vai tentar, inclusive, diferenciar-se de Trump e garantir a reeleição.
A democracia
brasileira vem sendo estrangulada pouco a pouco desde o "golpe
paraguaio" de 2016, modelo que dispensa a intervenção militar direta e
convoca parlamentares e juízes para impor um poder coercitivo mais sutil, mas
nem menos violento e sistemático. No Brasil, os militares entraram para o
governo, com muitos privilégios, apenas depois do trabalho dos juízes – na
Itália, depois da operação Mãos Limpas, surgiu Berlusconi; aqui, depois da Lava
Jato veio Bolsonaro – e depois da obra dos deputados e senadores golpistas no
Congresso em 2015-16.
Quando se fala de
necropolítica para designar o negacionismo de Bolsonaro e sua turma, que já
produziu quase 230 mil mortes pela Covid 19 no País, é preciso lembrar também
que isso significa igualmente a morte da democracia.
Reinaldo Lobo é psicanalista e
articulista
Fonte:domtotal.com
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