No
relato de Gn 1,1-2,4a, o Criador cria mediante a eficácia de sua palavra
(Unsplash/Calvin Craig)
Relatos
bíblicos da criação são marcados por processo de demitologização
Sinivaldo S.
Tavares*
A Bíblia recolhe
distintas narrativas da Criação. Por si só, esta pluralidade nos remete à
importância da fé na Criação no universo religioso judeu-cristão. Quanto mais
intensa, de fato, uma experiência, mais ela fomenta uma variedade incontida de expressões.
Embora sejam visíveis as semelhanças com os mitos das origens dos povos
vizinhos, saltam aos olhos peculiaridades dos relatos bíblicos da criação. Em
contato com outras tradições, o povo eleito admira, seleciona e recolhe
elementos de seus mitos das origens. Tais elementos, contudo, são recompostos e
ressignificados no horizonte de narrativas bem tecidas em torno a metáforas que
encarnam dimensões peculiares e, portanto, constitutivas da experiência bíblica
de fé.
Os mitos das origens
constituem grosso modo cosmogonias e representações do caos
primitivo caracterizado pela indistinção. Os relatos bíblicos exprimem essa
passagem do caos primordial a uma situação de harmonia propiciadora de vida.
Todavia, tais relatos introduzem elementos que caracterizam um processo de
"demitologização/desmistificação". Os mitos das origens, em geral,
elaborados e difundidos a partir dos ambientes de corte, operavam uma
verdadeira mistificação de relações de dominação encobrindo injustiças e
desmandos. Exprimiam, portanto, a legitimação religiosa do poder econômico,
político, social e cultural vigente.
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O povo bíblico é
particularmente sensível à vida experimentada como evento e, por essa razão,
sua preocupação primeira é com a história e o caráter inusitado de seus
acontecimentos e processos. Os processos cósmicos não lhe passavam
despercebidos, apenas que eram acolhidos e experimentados na sua íntima relação
com a historicidade da vida. Neste sentido, percebe-se nas narrativas bíblicas
da criação uma estreita relação entre as experiências de libertação/salvação e
criação. É bom lembrar que a fé no Deus criador ressurgiu justamente nos
momentos mais críticos da história do povo bíblico. "Não vos lembreis das
coisas passadas, nem considereis as antigas. Eis que faço uma coisa nova! Já
está despontando: porventura não o percebeis?" (Is 43,18-19a). A fé
bíblica no Deus Criador comporta uma tríplice dimensão de Criação: 1) no
presente e, portanto, como evento que se revela no curso da história (cf. Is
43,18-19a); 2) no princípio: "No princípio criou Deus o céu e a
terra" (Gn 1,1); 3) como plenitude da obra divina: "Eis que faço
novas todas as coisas" (Ap 21,5). Não se adverte, portanto, ranço algum de
separação, menos ainda de contraposição, entre os eventos da criação, da
história da salvação e dos tempos derradeiros e definitivos. Distingue-se a
história presente tanto da origem primordial do tempo quanto da plenitude de
todo o tempo, sem separá-las nem contrapô-las.
Essa específica
experiência de fé testemunhada pelo povo bíblico provocou, portanto, um duplo
processo de "demitologização" e "desmistificação" que se
verificou na passagem de mitos a metáforas no interior dos relatos da criação.
Destacamos, aqui, a título de exemplo, metáforas em torno das quais foram
compostos três dos principais relatos bíblicos da Criação. Na narrativa de Gn
2,4b-25, afloram relações de pertença e de cuidado como constitutivas do ato
criador de Deus. E tudo é dito metaforicamente. O relato inicia falando de uma
dupla carência, responsável pelo caráter inóspito e desértico da terra: a falta
de alguém que cuide/cultive a terra e a carência de chuvas que a tornem fértil.
O ser humano "cultivador/cuidador" (adam) é modelado pelo
Criador a partir da própria "terra cultivável" (adamah). É, de
fato, a experiência de íntima pertença que faz do ser humano o
cuidador/cultivador da terra. Nesta narrativa, o Criador aparece como artesão
cuidadoso que plasma o ser humano do próprio barro da terra para que ele seja
seu cultivador/cuidador. Porque feito do barro da terra, o ser humano é chamado
a ser o cultivador da terra.
No relato de Gn
1,1-2,4a, o Criador cria mediante a eficácia de sua palavra. O surgimento da
vida é metaforicamente apresentado como fruto da interpelação divina. As
criaturas todas são criadas no bojo de um diálogo existencial e salvífico. Deus
as chama, cada uma por nome, no qual reside a incumbência primordial de cada
criatura. A eficácia da Palavra divina que cria a totalidade da realidade será
responsável também pela criação da história enquanto trama amorosa da relação
pessoal do Deus bíblico com seu povo escolhido. Toda a ação criadora de Deus é
destinada ao shabat, culminância da criação. Na celebração da
criação se encontra seu sentido. Assim como tudo quanto existe brotou
gratuitamente do desejo generoso do Criador, o louvor e a ação de graças
constituem a melhor correspondência das criaturas à generosidade e amor de seu
Criador.
Portanto, é o Criador
quem cria pela generosidade e habilidade de suas mãos e pela força e eficácia
de sua Palavra. Em ambos os relatos, no transfundo de suas metáforas,
transparece a presença simultânea de dois elementos constitutivos da fé
bíblica: a origem divina do mundo e a autonomia das criaturas em relação ao
Criador. Esta consciência se encontra na raiz da profissão de fé no Deus
criador: a experiência da gratuidade da vida. A concepção da criação como
gratuidade transparece de maneira mais clara ainda nos relatos sapienciais da
Criação, dentre os quais se destaca o texto de Pr 8, 22-31. Aqui, o ato de
criar é explicitamente associado à experiência do jogo. O diferencial deste
relato em relação aos demais é a figura da sabedoria metaforicamente descrita
como criança que, durante todo o tempo, brinca na presença do Criador,
divertindo-se e entusiasmando-se dia após dia com o conjunto de suas criaturas.
*Sinivaldo S. Tavares. Frade
franciscano. Pós-doutor em Teologia Sistemática. Professor na Faculdade Jesuíta
de Filosofia e de Teologia, Belo Horizonte.
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