Mesmo
que na consciência de Jesus houvesse apenas motivações religiosas, sua aliança
com os oprimidos, seu projeto de vida para todos, tiveram objetivas implicações
políticas (LUMO project)
Não se trata de
vincular fé e política somente quando nos referimos aos atuais processos de
libertação. Isso seria ideológico, no primeiro sentido que Marx atribuiu a este
termo, ou seja, uma tentativa de camuflar os fatos com uma racionalização que
separa, em nível da linguagem, o que se encontra unido em nível da realidade. O
fato de fé, política e ideologia estarem sempre vinculados em nossas vidas
concretas, como seres sociais que somos ‑ ou animais políticos, na expressão de
Aristóteles ‑ não deve constituir uma novidade senão para aqueles que se deixam
iludir por uma leitura fundamentalista da Bíblia, que pretende desencarnar o
que Deus quis encarnado
Frei Betto
"Não há nada mais
político do que afirmar que a religião nada tem a ver com a política",
disse o bispo sul‑africano Desmond Tutu. Na América Latina, não se pode
separar fé, política e ideologia, assim como não seria possível fazê‑lo na
Palestina do século I. Na terra de Jesus, quem detinha o poder político detinha
também o poder religioso. E vice‑versa.
Talvez soasse estranho
hoje a certos ouvidos religiosos introduzir a leitura do Evangelho falando de
Trump, Macron ou Putin. No entanto, ao introduzir‑nos nos relatos da prática de
Jesus, Lucas primeiro nos situa no contexto político, informando‑nos que
"já fazia quinze anos que Tibério era imperador romano. Pôncio Pilatos era
governador da Judéia, Herodes governava a Galileia e seu irmão Filipe, a região
da Ituréia e Traconites. Lisânias era governador de Abilene. Anãs e Caifás eram
os presidentes dos sacerdotes" (3, 1‑2).
Foi sob o símbolo da
cruz que a colonização ibérica na América Latina promoveu o genocídio indígena
e o saque das riquezas naturais. Sob a silenciosa cumplicidade da Igreja Católica,
mais de 10 milhões de negros foram levados da África como escravos para o
Continente. Com a conivência de nossas Igrejas cristãs, instalou‑se, em nossos
países, o sistema burguês de dominação capitalista.
Portanto, não se trata
de vincular fé e política somente quando nos referimos aos atuais processos de
libertação. Isso seria ideológico, no primeiro sentido que Marx atribuiu a este
termo, ou seja, uma tentativa de camuflar os fatos com uma racionalização que
separa, em nível da linguagem, o que se encontra unido em nível da realidade. O
fato de fé, política e ideologia estarem sempre vinculados em nossas vidas
concretas, como seres sociais que somos ‑ ou animais políticos, na expressão de
Aristóteles ‑ não deve constituir uma novidade senão para aqueles que se deixam
iludir por uma leitura fundamentalista da Bíblia, que pretende desencarnar o
que Deus quis encarnado.
A fé é um dom do Pai a
nós que vivemos neste mundo. Na vida após a morte, nossa fé será vã, pois
veremos a Deus face a face. Portanto, a fé é um dom politicamente encarnado,
que tem razão de ser nesta conflitividade histórica, na qual somos chamados,
pela graça, a distinguir o projeto salvífico de Deus. Nesse sentido, nem mesmo
em Jesus é possível ignorar a íntima relação entre fé, política e ideologia,
ainda que para alguns cristãos pareça estranho aplicar certas categorias
Àquele que nos assegura, por sua ressurreição, a vitória, em última instância,
da vida sobre a morte e da justiça sobre a injustiça.
Que Jesus tinha fé o
sabemos pelos textos que nos falam dos longos momentos que ele passava em
oração (Lucas 4, 16; 5, 16; 6, 12). Ora, só quem necessita aprofundar sua fé
entrega‑se ao encontro orante com o Pai. A oração é para a fé o que o adubo é
para a terra ou o gesto de carinho para o casal que se ama. O Evangelho nos
fala até mesmo das crises de fé de Jesus, como as tentações no deserto (Mateus
4, 1‑11; Marcos 1, 12‑13; Lucas 4, 1‑13) e o abandono que ele sentiu na agonia
no horto das oliveiras (Mateus 26, 36‑36; Marcos 14, 32‑42; Lucas 22, 39‑46).
Há quem insista que
Jesus, motivado por sua fé, restringiu‑se a comunicar‑nos uma mensagem religiosa
que nada tinha de política ou de ideológica. Tal leitura só é possível se reduzimos
a exegese bíblica à pescaria de versículos, arrancando os textos de seus
contextos. Ora, não só o texto nos revela a Palavra de Deus, mas também o
contexto social, político, econômico e ideológico, no qual se desenrola a
prática libertadora de Jesus.
Todos nós cristãos somos
inelutavelmente discípulos de um prisioneiro político. Mesmo que na
consciência de Jesus houvesse apenas motivações religiosas, sua aliança com os
oprimidos, seu projeto de vida para todos (João 10, 10), tiveram objetivas
implicações políticas.
Já na introdução de seu
Evangelho, Marcos mostra como as curas operadas por Jesus ‑ o homem de espírito
mau, a sogra de Pedro, os possessos, o leproso, o paralítico, o homem de mão
aleijada ‑ desestabilizaram tanto o sistema ideológico e os interesses
políticos vigentes, que levaram dois partidos inimigos ‑ o dos fariseus e o dos
herodianos ‑ a fazerem aliança para conspirar em torno de "planos para
matar Jesus" (3, 6). Assim, vê‑se que as implicações políticas da ação
salvífica de Jesus tornaram‑se tão graves e ameaçadoras que induziram Caifás,
em nome do Sinédrio, a expressar que era "melhor que morra apenas um
homem pelo povo do que deixar que o país todo seja destruído" (João 11,
50).
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