É
preciso que os pastores, preocupados em salvar o seu poder e sua legitimidade,
não valorizem mais a lei do que o amor pelo qual Jesus deu a vida (Reprodução)
Ouvir o outro e conviver com o
diferente gera conhecimento que exorciza preconceito e gera admiração, respeito
e amor
Marcelo Barros
Quem acompanha as redes
sociais sabe que nas últimas semanas, tem se intensificado o clima de tensão e
mesmo de conflitos na interpretação da fé e do modo de compreender a missão
cristã. Mais concretamente, o alvo escolhido por católicos tradicionalistas
para a sua guerra sagrada passou a ser a 5ª Campanha da Fraternidade Ecumênica,
aberta pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) na última
quarta-feira, 17 de fevereiro, início da Quaresma.
É surpreendente o fato
desta ser a quinta campanha da fraternidade ecumênica e somente agora se
manifestar todo este ódio e rejeição. Antes de mais nada, isso revela que,
neste início de 2021, o ambiente social e eclesial no Brasil é mais duro,
fechado e polarizado em posturas extremas do que aquele que vivíamos em 2000,
quando fizemos a primeira campanha ecumênica e as outras que se seguiram em
2005, 2010 e 2016.
É claro que, desde o
começo deste caminho, havia tensões e divisões nas Igrejas. Sempre houve. No
entanto, em nossos dias, se exacerbou o espírito de cruzada em defesa da
Cristandade. E, mais do que antes, as redes virtuais oferecem excelente palco
para o destempero de quem busca vítimas a queimar na fogueira do seu dogmatismo
e moralismo.
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Os acusadores da
Campanha da Fraternidade Ecumênica não são tão sinceros a ponto de afirmar que
não se interessam por Fraternidade aberta a todos e que, para eles, o diálogo
nada tem a ver com a fé e a espiritualidade. Também pensam que o combate à
heresia que veem sempre nos outros é mais importante do que a unidade dos
cristãos, pela qual Jesus orou na véspera de sua paixão. Defendem valores
tradicionalistas e usam como arma de guerra a fé interpretada como dogma contra
os inimigos. Então, tinham de encontrar no texto da CFE 2021 algum pretexto
para a sua luta. E focaram o seu combate em um número do texto-base da CFE 2021
(o 68). Neste parágrafo, eles acham que o texto-base defende o que chamam de
"ideologia de gêneros". Faz menção a gays, travestis e transexuais
como vítimas da violência nossa de cada dia.
A primeira impressão a
qualquer observador é que a polêmica veio um pouco tarde demais. O texto já
está distribuído por todo o país e a Campanha está em pleno andamento. Por
isso, a própria CNBB, alguns bispos e um cardeal vieram a público tentando
apagar o fogo. Infelizmente, quase todas essas intervenções se revelaram
ambíguas e pouco felizes. De algum modo, todas essas mensagens parecem dizer
aos oponentes: "de fato, o que vocês estão reclamando é justo e o texto
não corresponde ao pensamento católico, mas como tínhamos nos comprometido em
fazer mais uma campanha ecumênica, não conseguimos evitar isso.
Desculpem".
Em nenhuma delas aparece
a mínima postura de solidariedade ao CONIC. Ao contrário, todas dão a impressão
de que os bispos pedem desculpas ao Centro Dom Bosco pela obrigação de serem
ecumênicos e terem sido pouco cuidadosos ao não censurar previamente o
texto-base da CFE. Explicam que o texto é ecumênico, como se isso fosse sua
limitação ou defeito. Se algum(a) leitor(a) pensar que, pelo fato de ser
ecumênico o texto é, no plano mais profundo católico, isto é, universal, os
bispos vêm e corrigem: Não. E fazem questão de dizer que, ao menos no que diz
respeito ao ensinamento moral, o pensamento católico não é ecumênico.
Lamentável.
Para quem lê o
Evangelho, sabe que Jesus teve de enfrentar muitas polêmicas como essa. Basta
ler o Evangelho de Marcos ou algumas páginas do 4º Evangelho para acompanhar os
dolorosos debates de Jesus com doutores da lei, fariseus e religiosos do
templo. O ataque lançado contra Jesus era sempre o de que ele parecia não estar
de acordo com a lei e ser um risco para a religião hegemônica. E Jesus que,
conforme Mateus, fazia questão de dizer "não ter vindo abolir a lei e sim
levá-la à sua plenitude" (Mt 5, 17), insistia que a lei, o sábado e as
instituições religiosas deveriam servir à vida e ser em função do ser humano e
não o contrário. Em seu tempo, Paulo conclui que a letra mata e só o Espírito
faz viver (2 Cor 3, 6).
Para quem dedica a sua
vida ao que o saudoso irmão Roger Schutz, fundador e primeiro prior de Taizé,
denominava "a paixão pela unidade do Corpo de Cristo", isso tudo é
extremamente doloroso. Ensina-nos muitas coisas. Talvez a primeira é que documentos,
textos e estudos são importantes, mas não transformam o coração sectário de
ninguém. Só a convivência e o amor são capazes dessa conversão pascal.
O tema desta CFE 2021 é
tirada da carta aos Efésios. Ali no capítulo 2, a carta alude ao antigo muro
que, no templo de Jerusalém dividia o átrio dos gentios (pagãos) do átrio dos
judeus. E o texto diz que, pela sua morte na cruz, Jesus aboliu este muro de
inimizade que separava as pessoas em religiões diferentes. "De dois povos,
ele fez um só povo, abolindo a Lei, com seus mandamentos e exigências" (Ef
2, 15).
Infelizmente, 21 séculos
depois, uma Campanha da Fraternidade Ecumênica que nem é inter-religiosa - é
proposta a cristãos, todos batizados no mesmo Cristo -, receba tanta
incompreensão. Religiosos católicos, com cumplicidade até de alguns pastores,
parecem decididos a reedificar de novo o muro de separação. É preciso que os
pastores, preocupados em salvar o seu poder e sua legitimidade, não valorizem
mais a lei do que o amor pelo qual Jesus deu a vida.
E a todos e todas,
chamados(as) a testemunhar que Deus é amor e Jesus morreu "para reunir na
unidade os filhos e filhas de Deus dispersos pelo mundo" (Jo 11, 52), não
desanimemos e retomemos à construção da unidade a partir de baixo e não das
cúpulas. A partir do amor e não apenas das leis. Ouvir o outro e conviver com o
diferente gera conhecimento que exorciza preconceito e gera admiração, respeito
e amor.
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