“Jesus saiu da sinagoga e foi, com
Tiago e João, para a casa de Simão e André” (Mc 1,29)
Neste tempo litúrgico conhecido como
“Tempo Comum”, nos convém ter referências que nos ajudem a caminhar sem cair na
rotina ou na monotonia. O Evangelho deste domingo nos oferece um texto inspirador
que sintetiza o modo com que Jesus organizava sua jornada ou dividia o tempo de
sua vida pública.
É significativo o fato de que Ele se
instale em Cafarnaum, cidade fronteiriça com os povos pagãos, tanto com Tiro e
Sidon, como com as cidades da Decápolis. Com isso, Jesus revela que sua missão
é universal, e isso será demonstrado em sua incursão pelas terras do Norte ou
fazendo travessia para a outra margem do lago, para o leste; por ambas direções
adentrava-se em territórios pagãos.
Embora sua presença pública se dê
numa cidade comercial e de tanto movimento de pessoas, o início do evangelho de
Marcos indica quatro espaços diferentes no quais Jesus se move; cada
um deles se converte em ensinamento e inspiração para todos nós.
Pela manhã, vai à sinagoga; ao
meio dia, à casa de Simão; ao entardecer atende os enfermos na rua,
e na madrugada, de forma sigilosa, se retira a um lugar solitário para
orar.
A oração comunitária, a relação
doméstica e familiar, a missão evangelizadora e a oração íntima e pessoal com o
Pai se conjugam de modo pleno, para nos indicar como deveria ser nossa jornada,
quanto à harmonia e ao exercício das relações essenciais: o trato com nosso
Deus Pai, a vida social e laboral solidária, a vida de oração e familiar, e a
relação interior. Viver a cotidianidade inspiradora: isso faz a diferença.
Quem sabe, poderíamos nos inspirar
no modo de viver diário do Senhor, que deverá ser sempre um referente para o
nosso próprio estilo de vida. Do equilíbrio que mantenhamos nas diferentes
dimensões dependem o crescimento pessoal, a maturação espiritual e a
estabilidade na opção de vida cristã.
Um traço característico de nossa
sociedade é o individualismo, o isolamento narcisista que nos centra e nos
concentra em nosso eu como lugar referencial de atenção, dedicação,
cuidado e investimento de quase todas as nossas energias disponíveis. Temos a
sensação de que tudo, a partir de fora, convida a viver fechados e surdos às
vozes que vem do nosso eu mais profundo. Muitas demandas externas nos impulsionam
a reduzir nossa vida ao tamanho de um “bonsai”, a atrofiar nossos desejos mais
nobres até reduzi-los aos pequenos bens acessíveis e a conformar-nos com
pequenas doses de prazer egoísta.
Ao nos convidar para percorrer,
junto ao Mestre, numa de suas estadias em Cafarnaum, o evangelista Marcos nos
apresenta uma cena na qual vemos, como num relance, tudo o que vai ser a
existência de Jesus: Ele se dirige à casa de Simão e André; ali encontrava-se
acamada a sogra de Pedro.
Uma mulher anônima, que só a
conhecemos quando referida a seu genro e possuída pela febre, foi introduzida
na festa comunitária do serviço fraterno pela mão libertadora de Jesus.
É o primeiro relato de cura em que o
Mestre vai ao encontro de uma enferma. Jesus ouve a conversa dos discípulos sobre
a doença da sogra de Pedro, toma a iniciativa, vai até a mulher doente e a toma
pela mão. Ao tomá-la pela mão, compartilha a sua força. E assim, revigorada
pela sua força, a febre a deixa, ela consegue se levantar e se põe a servir.
Assim soam e ressoam em nosso
interior as palavras do evangelista Marcos: “Jesus se aproximou, tomou-a pela
mão e a ajudou a levantar-se”. Gestos cheios de carinho, de compaixão, de
autoridade interior. Tudo o que faltava à religião oficial, é revelado agora
por este galileu diferente, desafiador, que não age movido por leis frias, mas
por um coração e uma mente integrados, em sintonia com o Pai.
Vale destacar uma constante no
evangelho de Marcos: a casa como lugar preferencial da ação de Jesus
e da missão dos seus discípulos. Certamente Jesus ensinava nas sinagogas, mas
ali sempre encontrava a resistência e o fechamento daqueles que faziam da Lei o
centro da vida; por isso, Jesus, como um inspirado mestre, revela um “novo
ensinamento”, não em lugares fechados e controlados, mas em espaços abertos,
nos campos, à beira do lago de Genezaré, indo pelos caminhos...; Jesus se
dirige aos lugares onde homens e mulheres realizam suas atividades comuns, no
simples ambiente do trabalho cotidiano e, de maneira privilegiada, nas casas, começando
pela sua própria, em Cafarnaum, onde fora residir.
Jesus, como itinerante, dá início a
um “movimento de casas”. É que a casa acaba sendo o espaço
alternativo que melhor corresponde à atuação do Mestre, enquanto ponto de
partida e de chegada de sua missão itinerante. É a partir das casas que Jesus
exerce, à margem do que está estabelecido, sua autoridade em favor da vida, sem
depender de instituições e funções previamente normatizadas.
Assim, através de uma rede
eficiente, ampliada e centrada no Mestre e com funções complementárias, seus
seguidores, a partir das casas, prolongam o ministério de Jesus: “viver em
saída”, deslocar-se em direção aos excluídos, revelar a presença do Pai na
simplicidade do cotidiano das pessoas, etc. Neste sentido, a casa cumpre
uma função vital para a expansão da causa do Reino de Deus. Em outras palavras,
a causa de Jesus (Reino) encontra nas casas seu lugar natural.
É fácil concluir que esta rede de
seguidores nas casas acabe se organizando de uma forma concêntrica, ao mesmo
tempo que horizontal, favorecendo de modo definitivo e natural o avanço do
Reino; tal organização se diferencia das estruturas piramidais e hierárquicas,
próprias de toda e qualquer instituição, com os riscos de esclerose que lhe são
inerentes. Aqui, revela-se sumamente estimulante resituar a continuidade da
causa de Jesus de Nazaré nos ambientes fraternos e igualitários, onde a casa se
revela como espaço próprio da simplicidade e da cotidianidade.
Trata-se, pois, de uma alternativa urgente,
frente à persistência petrificada de conservar formas e estruturas anacrônicas
que, em função do poder, continuam a predominar em nossos ambientes cristãos,
apesar dos apelos insistentes do próprio evangelho.
O Evangelho de Jesus é experiência
de casa, de comunhão e palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino. A
primitiva comunidade dos seguidores de Jesus não começou formando uma nova
religião instituída, nem se preocupou com construções de templos ou com
organizações hierarquizadas; ela se apresentou como uma federação de casas
abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e
de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do
Espírito do mesmo Jesus.
Ser seguidor(a) é ser chamado(a) a
viver no seu dia-a-dia esta mística do amor da maneira como Jesus
viveu (na família, no trabalho, no descanso, na luta em favor da vida, nos
compromissos sociais...).
O cotidiano é o meio no
qual o amor toma densidade e se expressa preferentemente; ele é
o lugar privilegiado da vivência da espiritualidade do seguimento,
deixando-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a
inserir-se na trama da vida humana e a dignificá-la.
Falamos de uma cotidianidade humana,
isto é, daquelas atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em
sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação que não
se reduz à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição ou
automatismo.
Sabemos que o cotidiano revela
um perigo que é a rotina, essa sensação de fazer tudo mecanicamente,
inclusive a vivência da fé, e de perder com isso o ardor do novo ou o
impacto do extraordinário.
O amor é precisamente o
lubrificante que dá sentido à nossa vida cotidiana e nos faz superar
as dificuldades inerentes à mesma; o descentramento de nós mesmos, a busca da
verdade e do bem comum, a ação comprometida com a vida dos outros... se
tornam “normais” quando cultivamos o amor.
Texto bíblico: Mc
1,29-39
Na oração: O Espírito nos
faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas
nossos olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos
simples atos de nossa vida cotidiana.
- suas atividades diárias
fazem parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é
um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus
nas “rotinas diárias”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Fonte:centroloyola.org.br
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