“E imediatamente o Espírito impeliu
Jesus para o deserto...” (Mc 1,12)
É um privilégio iniciar este tempo
litúrgico, intenso e forte, chamado “tempo quaresmal”, deixando-nos “arrastar”
pelo mesmo Espírito de Jesus; tempo único que nos oferece a possibilidade de
fazer uma estratégica parada, de buscar o deserto em meio ao cotidiano, de
plantar os pés na terra firme do evangelho e assim viver um compromisso
transformador em nossa realidade. Nesse espaço e nesse tempo de maior
despojamento, podemos sair de nossas inércias, podemos deixar de lado nossas
seguranças e comodidades para transitar por novas paisagens. Há muitos modos de
fazer isso: assumir com seriedade esse momento, investir no cuidado interior,
abster-nos do rotineiro para abrir-nos ao inesperado e surpreendente...
Enfim, Quaresma sempre indica um
tempo especial, de crise-crescimento; hoje diríamos, de discernimento. E
o que devemos discernir? Qual é o crescimento-maturação que o tempo quaresmal
nos propõe? O discernimento implica, em primeiro lugar, uma
escuta atenta e uma profunda sintonia com o mesmo Espírito que atuava em Jesus,
para fazermos opções mais evangélicas, a serviço da vida. É o Espírito, força
de vida e amor, que nos conduz ao deserto para “desintoxicar-nos” de um modo de
viver atrofiado, imposto por um contexto social centrado na busca de poder e
prestígio, com seus inimigos mortais da competição, do consumismo, do
preconceito e que, lentamente, envenenam nossa vida, instigando-nos a romper as
relações de comunhão e compromisso. É preciso, de tempos em tempos, sair de
nossos espaços rotineiros e “normóticos”, deslocar-nos para os amplos espaços
do deserto, lugar despojado de tudo, para ali viver de novo o
encontro com a Voz e a Força que nos devolvem à vida, com outra inspiração.
Ali, guiados pelo Espírito, teremos a oportunidade de aprofundar nossa relação
com a Fonte do Amor que, depois, se expandirá numa nova relação com os outros e
com a natureza.
Neste ano, a CF está centrada no
tema do “diálogo”; e o deserto quaresmal ajuda a limpar os canais de
comunicação que estão obstruídos pelo excesso de gordura do nosso “ego”:
auto-centramento, busca dos próprios interesses, vaidades,... Sabemos que o
diálogo implica um des-centramento, uma saída de si, para escutar e acolher o
outro na sua diferença. O diálogo entre diferentes nos humaniza. Aqui não há
mais lugar para o julgamento, a suspeita, o fanatismo, a intolerância..., nas
diferentes situações da vida: religiosa, social, política, cultural,
racial... Dialogar é abrir-nos ao outro diferente, sair do nosso
próprio mundo, criar vínculos com outras pessoas, conhecer seu modo de ser e
pensar..., multiplicando assim os pontos de vista, para enriquecer-nos
humanamente, dilatar os horizontes, crescer pessoalmente.
Todo primeiro domingo da quaresma a
liturgia nos conduz até o deserto, onde Jesus foi
“tentado”. Tradicionalmente, as tentações de Jesus foram
interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus nos queria
dar o exemplo de fortaleza para nos ajudar a superar nossas tentações
cotidianas. Tal interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido
das “tentações de Jesus”.
As tentações não são tanto
uma “prova” a superar quanto um projeto que deve ser
discernido. O que parece certo, teológica e historicamente, é afirmar que
Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de
discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho,
sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre
qual seria seu estilo de messianismo que deveria assumir para sua missão, em
sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.
A “crise” põe à prova sua atitude
frente a Deus: como viver sua missão e a partir de quê lugar? buscando seu
próprio interesse ou escutando fielmente Palavra do Pai? Como deverá atuar?
dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? buscando poder e sua própria
glória ou a vontade de Deus?...
As tentações são, pois,
expressão da oferta de dois tipos de messianismos, dois projetos, duas lógicas
que se opõem.
* Por um lado, está a lógica da
auto-suficiência, da segurança, a partir do centro, a partir de cima, um
messianismo triunfalista, evitando conflitos com o poder político e religioso,
alheio ao sofrimento do povo; uma lógica que supõe adaptação ao “sistema”, ser
servido antes que servir.
* E, por outro lado, aparece a
lógica da solidariedade, a partir da margem e da periferia da
sociedade política e religiosa, a partir do povo, a partir de baixo, vivendo a
filiação e a confiança no Pai, em gratuidade, num estilo de simplicidade e
pobreza alternativo ao “sistema”, optando por servir antes que ser servido; uma
lógica de inclusão e de vulnerabilidade frente o sofrimento do povo, na linha
do Servo de Javé e dos grandes profetas de Israel.
Fruto da experiência batismal de
sentir-se Filho e do discernimento do deserto, Jesus elege a lógica da
solidariedade e do serviço, a partir dos últimos. Assim como foi “impelido”
pelo Espírito ao deserto, Jesus se deixa conduzir pelo mesmo Espírito em
direção às margens excluídas, às “periferias existenciais”.
A partir deste discernimento e
opção, o messianismo de Jesus se manifesta como “diferente” daquilo
que muitos esperavam em Israel. O fato surpreendente é que Jesus começa a falar
e a agir a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e
econômica da Palestina: a Galiléia. Jesus rompeu com a família,
afastou-se da vida normal que levava, iniciou uma vida itinerante e
passou a viver a partir de um sonho: a utopia do Reino. Vivendo
no meio de uma realidade conflituosa, de exploração, de desintegração das
instituições, de injustiças... Jesus, unido ao Pai, torna-se aluno dos fatos,
descobre dentro deles a chegada da hora de Deus e anuncia ao
povo: “O tempo já se completou e o REINO de Deus está próximo. Convertei-vos
e crede no Evangelho!” (Mc 1,15). Ele vem realizar as esperanças do
povo, despertadas e alimentadas ao longo dos séculos, pelos profetas. Com
sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos
especialistas sobre Deus. Ele não tinha uma instituição em que
pudesse se apoiar; tudo brotava de dentro.
Enquanto todos tinham os olhos
voltados para o centro (sobretudo para o templo de Jerusalém onde era
elaborado o saber que ia se expandindo até chegar à menor das sinagogas), Jesus
revela sua presença nas “periferias” do mundo. A partir daí, todos
nós também devemos dirigir constantemente o olhar para as “novas
periferias”, lugar onde Ele continua nos convocando.
“O discípulo-missionário é um
des-centrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é
enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não
é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa
Francisco)
Quê significa “fronteiras
geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair
de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços
onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos
frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir
espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas
experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que
pode nos enriquecer... A vida está cheia de possibilidades e surpresas;
inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em
nossas vidas; encontros, diálogos, aprendizagens, motivos para celebrar, lições
que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais
simples...
A periferia passa a ser
terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali
aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento
profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à
ordem estabelecida.
Texto bíblico: Mc
1,12-15
Na oração: Quaresma é tempo
para desintoxicação existencial: feridas mal curadas, fracassos, modos
fechados de viver, intolerâncias, legalismos e moralismos, ...
- De quê você precisa se
desintoxicar? De quê você precisa se alimentar ao longo deste tempo quaresmal?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Fonte:centroloyola.org.br
Texto muito interessante, pra nós cristãos, fazer uma reflexão
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