O dom
de Deus também está nos fenômenos variados das vivências das sexualidades
(Unsplash/Ramez E. Nassif)
Por um lado, a bíblia condena a
desordem sexual; por outro, valoriza a vida sexual
César Thiago do
Carmo Alves*
A sexualidade humana
está na esfera do dom. Ela não se reduz a mera facticidade biológica. Antes, a
sexualidade pode ser experimentada mediante educação, ritos, costumes, moral,
religião, enfim, no contexto cultural. No Ocidente, para se pensar sobre a
sexualidade recorre-se com frequência à tradição judaico-cristã, no entanto,
poucos se atentam que no cristianismo primitivo a reflexão sobre ela bem como
os comportamentos sexuais possuem pouca base bíblica. O ponto de partida é antes
de tudo o contexto cultural no qual se inseria a comunidade. Grosso modo, até o
Concílio Vaticano II, a moral cristã da sexualidade está muito mais pautada em
uma matriz pagã do que nas raízes cristãs. Nesse sentido, pode-se destacar
cinco influências sofridas pelo cristianismo.
A primeira influência
consiste no fato de que os filósofos e teólogos durante séculos tiveram como
base os conhecimentos biológicos de Aristóteles para elaborar uma ética sexual
e matrimonial. O pensamento de Aristóteles consistia em afirmar que o homem
produz o sêmen, portanto, a semente que contém em si todas as potencialidades
para gerar uma pessoa. No sêmen já está o nascituro que necessita apenas
de um lugar apropriado para que se possa desenvolver. Desse modo, a semente cumpre
plenamente sua função quando depositada na sementeira, isto é, nos órgãos
reprodutores das mulheres. Assim, perder o sêmen de forma voluntária, não
colocando-o no seu devido lugar no intuito de atingir, naquela concepção,
o seu fim natural, equivaleria a uma ação moral pecaminosa. Em última análise,
uma espécie de homicídio. Nesse sentido, os atos sexuais para serem livres da
culpa moral, deveriam ter como finalidade tão somente a procriação. A partir
dessa perspectiva justifica-se também biologicamente a inferioridade da mulher.
Leia também:
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aspecto religioso
Sexualidade e humanização: um encontro singular plural
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A segunda influência é
o neoplatonismo. Ele acentua o dualismo corpo-alma. O corpo é a prisão da alma.
O neoplatonismo ao apresentar uma visão negativa do corpo, por consequência,
estende essa mesma visão para a sexualidade. A perspectiva cristã fundamentada
nessa lógica propõe uma vida mais pura e mais dedicada à contemplação pela
abstinência sexual.
A terceira influência
vem do estoicismo greco-romano. O seu eco pode ser escutado até hoje no
cristianismo. As paixões e o prazer são elementos que perturbam a alma pelo
fato de serem contrários à razão. Nesse sentido, propõe como ideal de vida a
recusa ao prazer, a ausência das paixões e a orientação da sexualidade somente
para a procriação. É necessário dominar as paixões para se atingir a perfeição
moral. Isso se consegue através da imperturbabilidade, isto é, dominando os
sentimentos pela razão. Essa perspectiva está ainda na pregação de muitos
religiosos.
A quarta influência é
oriunda da filosofia dualista do gnosticismo. Ela postula a existência de um
deus do bem e de outro do mal. Toda matéria e corpo tem sua origem no segundo
deus. Assim, despreza e considera tudo o que vem da matéria como impuro e, por
isso, condena o exercício e o prazer sexual. O ideal de vida para as almas
nobres é a continência sexual.
A quinta e última
influência é a maniqueísta. Está basicamente na mesma perspectiva da filosofia
dualista do gnosticismo. O maniqueísmo afirma a existência de dois princípios
opostos entre si, o bem e o mal. A luz e as trevas. O corpo é mau. A
abstinência sexual no que tange a sexualidade é o fim da ética maniqueísta.
A partir dessas cinco
influências o cristianismo desenvolveu paulatinamente sua compreensão a
respeito das sexualidades humanas. Por muito tempo era preponderante uma
perspectiva marcada pelo lugar de fala do homem. Ainda esse lugar de fala é
forte, mas aos poucos se têm escutado também as mulheres.
Após o Concílio
Vaticano II, com o impulso de retorno às Escrituras, buscou-se compreender o
que a Palavra de Deus ensina a respeito das sexualidades. Descobriu-se que no
Antigo Testamento, tanto no mundo semítico como também fora dele, era
preponderante a ideia de que tudo o que se relaciona com o sexo torna impuro
para o culto (Lv 15,18). O incesto, o adultério e o onanismo eram transgressões
passiveis de morte (Dt 22,22; Lv 18,6-18 etc). A automutilação era punida com a
exclusão da comunidade (Dt 23,2). Também eram proibidas a prostituição, a
pederastia, a sodomia e a sedução das virgens. Por outro lado, o Antigo
Testamento vê de forma positiva a sexualidade quando a vincula com a alegria e
ao agradecimento (Dt 24,5; Ecl 9,9). No Novo Testamento a sexualidade deixa de
ser considerada obstáculo para o culto. Para Jesus, a maldade vem do coração e
é por isso que se destaca a condenação dos desejos pecaminosos (Mt 5,28).
Louva-se a dignidade da castidade, elemento da vida cristã (2 Cor 7,1) e fruto
do espírito Santo (Gl 5,23). Nova também é a apresentação que Jesus faz da
virgindade como ideal de vida religiosa e moral (Mt 19,12). Por um lado, a
bíblia condena a desordem sexual. Por outro, valoriza a vida sexual. A relação
homem-mulher é exaltada desde o amor de Deus para com seu povo, ilustrando o
amor esponsal do Senhor.
Indubitavelmente um
avanço foi a Constituição Pastoral Gaudium et Spes que se
desvencilhou da perspectiva de uma sexualidade voltada tão somente para a
procriação. Inseriu a categoria da comunhão no amor (n.50). Desde o Concílio
Vaticano II, a Teologia e os documentos oficiais da Igreja preocupam-se, em
geral, salvo algumas exceções, com a valorização positiva da sexualidade como
dimensão integral do ser humano.
Existe um desafio
ainda que precisa ser enfrentado de forma séria e considerando os diversos
saberes científicos que é reconhecer os fenômenos variados das vivências das
sexualidades e atestar ali também o dom de Deus. Urge ainda a necessidade de
uma escuta mais elaborada desses fenômenos, sobretudo dos que estão na
contramão do padrão normativo.
A sexualidade é dom do
Criador e, quando a Igreja reconhece esse dom, é capaz de louvar a Deus por sua
obra criadora, pois tudo o que ele fez é bom!
*César Thiago do Carmo Alves é
doutorando e mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia
e Teologia (FAJE). É graduado em Filosofia pelo ISTA e Teologia pela FAJE.
Possui especialização em Psicologia da Educação pela PUC Minas. É membro do
grupo de pesquisa Teologia e diversidade afetivo-sexual da FAJE.
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