Já
que é duro lidar com a realidade, fica mais fácil deixar-se iludir
(Unsplash/Rachit Tank)
Porque gostamos mesmo é de uma boa
mentira que nos ajude a viver iludidos, perdidos de nós mesmos
O brasileiro é um povo
místico, mesmo que não esteja tratando estritamente de religião. Sim, uma visão
mágica permeia o olhar nestas terras, ainda que parte dele seja corroborada por
teorias estrangeiras, como as difundidas no livro O segredo, que
inclusive ganhou uma versão nacional, sua releitura feita por Ana Maria Braga.
Ter uma versão
desse best seller pela apresentadora, que é devota de Nossa
Senhora de Fátima, é testemunho da bricolagem nacional, que mistura credos sem
fazer oposição entre eles. Como o faz Ana Maria, pode-se crer em Maria e
postular a ideia do livro de uma lei da atração universal, como se fosse
possível conquistar o que se quer pela força do pensamento. Talvez não pareçam
ser credos opostos, mas podem não ser compatíveis a doutrina católica, da qual
despende a devoção mariana, e as teorias que atribuem poder e confiança numa
força obscura do universo ou de si mesmo.
O fato é que a crença na
teoria da atração parece explicar o medo brasileiro de lidar com a realidade.
Por exemplo, se alguém tomasse veneno e o médico dissesse que a pessoa iria
morrer, não poderíamos dizer que a palavra do médico estaria atraindo a morte
ou o mal, mas simplesmente traçando um prognóstico em vista do diagnóstico, a
realidade do paciente. Contudo, quando alguém diz que determinado político não
vai bem e que as consequências para o país serão ruins, muitos se arvoram em
dizer: "Vocês têm que torcer pelo Brasil e não ficar o puxando pra
baixo".
Bem, não se trata de
torcer ou não. Não é o descrédito do povo que faz dar errado uma ação política,
senão sua própria natureza viciada ou equivocada, dada a inaptidão de
determinado mandatário para a gestão da coisa pública. O que se nota é que,
como o eleitor se implica afetivamente àquele a quem elegeu, tenderá a justifica-lo
ou buscar tangenciar o reconhecimento do equívoco de sua própria opção
eleitoral.
Isso funciona com outras
coisas também. Pense num medicamento, como a invermectina, que em laboratório
aparece como útil contra a ação do coronavírus. Entretanto, para causar seu
efeito no organismo precisa ser ingerida numa larga quantidade. O problema é
que esse montante, necessário às células dos pulmões, também iria para órgãos
como o fígado, que não o suportariam. Ou seja, a ideia de um tratamento precoce
com o medicamento é cientificamente inviável. Não obstante, a pregação que se
houve é a de que não se deve roubar a esperança do povo na possibilidade de um
medicamento barato resolver seu problema.
Pois bem, não se trata
de tirar ou dar esperanças, pois não é a crença no medicamento que o fará ser
eficaz contra uma enfermidade. Porém, encarar essa realidade implica em lidar
com a necessidade de isolamento e a angústia da possibilidade de se adquirir a
doença enquanto se aguarda pela vacina.
Recentemente um conhecido
esbravejava contra os que não sabem apoiar. É que ele passou a mexer com um
desses novos aplicativos de day trader, que se parecem mais com um
jogo de apostas. Ele fizera uma postagem sobre seus investimentos numa rede
social digital e seus amigos o avisaram do risco que isso implicava. Bastou o
alerta para que ele fizesse novas postagens contra os "falsos amigos"
que queriam colocá-lo para baixo.
Não encarar a realidade
dos riscos e de sua ignorância sobre o mercado de ações possibilitava a esse
rapaz a coragem de arriscar. Era necessário criar uma ilusão sobre si. Se algo
der errado, terá sido um imprevisto, o que tiraria dele a responsabilidade pelo
seu erro no investimento. Na verdade, lidar com a responsabilidade sobre a
própria vida é difícil. Implica em arcar, além dos possíveis sucessos, com a
dureza dos fracassos.
Tudo isso nos faz
lembrar uma frase eternizada numa música de Cazuza: "Mentiras sinceras me
interessam". Já que é duro lidar com a realidade, fica mais fácil
deixar-se iludir. Nota-se que esses que a negam usam como tática, sobretudo, o
não aprofundamento sobre ela. É cômodo dizer que vários médicos ou várias
pesquisas apoiam determinado postulado, do que ler e estudar esses argumentos,
verificar sua validade e método. É mais prático reproduzir fake News e, assim,
dar vazão à própria ira, do que apurar sua veracidade.
Negar a realidade é um
mecanismo de defesa do ego. Se a realidade favorece algum tipo de conflito
psíquico ou sofrimento ao indivíduo, este desenvolve um trabalho inconsciente
de autoproteção, negando a realidade e substituindo-a por outra que mais
agradável. Assim são criadas as justificativas mais adversas. Daí se vê uma
mulher defendendo o marido que trai, culpando a amante, que teria seduzido o
inocente homem; ou então a mãe que, não podendo admitir a homossexualidade do
filho, atesta que este está confuso e tudo isso não passa de uma fase.
Na verdade, quem nega a
realidade a conhece, apenas mente para si. O problema disso é que a negação
pode ser sintoma de um problema maior, de não assumir quem se é na existência,
um automascaramento para se ver melhor. A negação como defesa pode ser reflexo
da negação de si, que filosoficamente chamamos de má-fé. No fundo, o que nos
dói não são as mentiras. Elas são apenas tentativas de tamponar feridas, coisas
que não queremos ver. De sorte que são elas que nos interessam. O que machuca
mesmo é a realidade, esta que nos mostra a finitude, o erro, o feio, o fracasso
de nossas vidas. O resultado adverso desse mascaramento é o tamponamento também
do que é belo, bom e pode nos realizar.
Se o adulto tem como
marca a autonomia, a capacidade de responder sobre a própria vida, fantasiar a
realidade é uma forma de infantilização. Embora crescidos, muitos ainda não
adulteceram e parecem modificar a letra de uma antiga canção, da novela
infantil Chiquititas: "Não me diga verdadezinhas, dói demais".
Tamponar a realidade talvez seja pior, já que ferida tampada pode não curar.
Gilmar Pereira é doutorando em Mídia e Cotidiano e está em formação como
psicanalista. Mestre em Comunicação e Semiótica, bacharel e licenciado em
Filosofia, bacharel em Teologia, também possui formação em Fotografia. É
responsável pela editoria de Religião do portal Dom Total, onde também é
colunista. Atua como palestrante, com grande experiência no campo religioso,
tem ministrado diversos minicursos nas áreas de Filosofia, Teologia e
Comunicação. Possui experiência como professor de Filosofia e Sociologia e como
mestre de cerimônia. Leciona oratória na Dom Helder Escola de Direito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário