Se
celebrássemos a memória da cruz de Jesus indiferentes a essas crucificações
atuais, nossa celebração não passaria de um cínico exercício de hipocrisia
religiosa (Isac Nóbrega/PR)
A celebração desta Semana
Santa nos convida a olharmos para fora das Igrejas a tragédia da cruz que
continua a ocorrer a cada dia
Marcelo
Barros
Neste ano,
novamente, as comunidades cristãs terão de celebrar a Semana Santa ainda sob o
peso da pandemia que, no Brasil, se torna cada vez mais ameaçadora. A
orientação justa é celebrar em casa e nos unirmos à nossa comunidade por
televisão ou internet. É pena não podermos celebrar o memorial da ceia de
Jesus, da sua cruz e da sua ressurreição na comunhão concreta dos irmãos e
irmãs de fé. No entanto, nossa reflexão tem de ir além das contingências e a
melhor celebração desta Páscoa será a resistência e o testemunho de
solidariedade às pessoas mais fragilizadas.
Neste ano de
2021, mais uma vez a celebração cristã da Páscoa coincide com a celebração da
Peshá judaica. Em todas as sinagogas do mundo, a festa da Páscoa começou no
sábado 27 de março e vai até o próximo sábado. Esta festa que o Judaísmo chama
"a festa da nossa libertação" lembra a todo ser humano sua vocação
para a liberdade.
Nestes dias que a
tradição cristã chama de Semana Santa, as Igrejas recordam a última semana de
Jesus em Jerusalém para celebrar a Páscoa. Jesus celebrou a Páscoa como todo
judeu praticante. No entanto, em sua época, a Páscoa proposta pelo livro do
Êxodo tinha se transformado em uma grande festa comercial, centralizada no
templo e para fortalecer o poder e a riqueza dos sacerdotes. Por isso, Jesus
quis dar a Páscoa um novo sentido que retomasse a espiritualidade libertadora
do Êxodo e, ao mesmo tempo, a estendesse a toda a humanidade.
Imbuídos deste
espírito, nesta quinta-feira à noite, iniciaremos a celebração cristã da Páscoa
recordando a última Ceia de Jesus, profecia de partilha e doação de vida, apelo
de unidade para toda a humanidade. Na sexta feira santa, celebramos a Páscoa da
Cruz. Olhamos a paixão de Jesus, tomando formas novas nas cruzes de todos os
oprimidos e oprimidas deste mundo e na dor da nossa mãe Terra. Na noite do sábado
e madrugada do domingo, mesmo em casa e, portanto, de forma doméstica e laical,
celebremos a vigília, mãe de todas as vigílias da Igreja.
Reunir-nos, mesmo
virtualmente, para celebrar esta vigília, na amizade do grupo do qual
participamos será como se ajudássemos a madrugada a nascer e despertássemos o
Sol da Justiça para recriar o mundo e renovar nosso ser engravidando-o de
ressurreição.
A celebração
desta Semana Santa nos convida a olharmos para fora das Igrejas a tragédia da
cruz que continua a ocorrer a cada dia, ao lado da nossa porta. Embora toda dor
humana mereça solidariedade, consideramos como prolongamento da cruz de Jesus
todo sofrimento físico ou psicológico, decorrente da missão para transformar o
mundo. Também as angústias e dores que decorrem de uma sociedade que perdeu o
coração.
Assim como um
artista esculpe ou desenha uma cruz na parede, podemos ver levantados na cruz,
povos inteiros aos quais desde os anos 1980, em El Salvador, o mártir Ignacio
Ellacuría chamava de "povos crucificados". Em cada país da América
Latina se contam aos milhares as vítimas do sistema que, para manter o
privilégio de uma pequena elite escravagista, provoca dor e morte em milhões de
seres humanos. E esta dor e morte de cruz se propaga como pandemia. Em muitos países
da América Latina, a cada dia, milhares de pessoas desaparecem, vítimas das
milícias policiais e dos grupos de narcotráfico. Em todos os países, mulheres
são vítimas do feminicídio e da violência machista. Na maior parte do
continente, povos originários têm sua sobrevivência física e suas culturas
ameaçadas. No Brasil, aumenta diariamente o número de jovens negros
assassinados nas periferias de nossas cidades. Esses são apenas alguns
elementos da violência nossa de cada dia.
Se celebrássemos
a memória da cruz de Jesus indiferentes a essas crucificações atuais, nossa
celebração não passaria de um cínico exercício de hipocrisia religiosa. Em meio
ao agravamento desta pandemia, sentindo diariamente a fragilidade da vida, esta
Páscoa deve ser profecia que nos dê força de resistência e clareza sobre a
nossa missão na realidade atual.
Antigamente,
éramos educados a compreender a morte e a ressurreição de Jesus como se fosse
um drama em dois atos. Ele foi morto e, no terceiro dia, Deus lhe deu uma vida
nova. A espiritualidade libertadora nos ensina que nossa fé será pascal se
conseguirmos ver na própria cruz e mesmo na morte do Cristo e do povo, os
sinais da força divina que vence a morte e aponta para a ressurreição como
vitória da vida.
Fonte:domtotal.com
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