Tom
Cruise socorreu brasileira atropelada em 1996 (Alberto Pizzoli/AFP)
Jesus sofre na dor dos enfermos e de
suas famílias, de modo que estamos vivendo a Sexta-Feira da Paixão há um ano
Frei Betto
Entramos na Semana
Santa. Todo o mundo, o Brasil de modo especial, vive há mais de um ano em plena
Sexta-Feira da Paixão: quase 3 milhões de mortos pela Covid, dos quais mais de
300 mil em nosso país.
Dói a incerteza da
doença em milhões de infectados; dói nas famílias dos mortos; dói a ausência de
velórios; dói nos trabalhadores da saúde que, exaustos, sabem que não podem
fazer milagres na falta de insumos, remédios, oxigênio e leitos; dói no bolso
dos comerciantes que veem seus negócios falidos; dói no risco cotidiano
enfrentado pelas pessoas obrigadas a sair de casa para trabalhar; dói ao viajar
no transporte coletivo lotado; dói na falta de crédito facilitado a quem vê o
seu empreendimento fechar, e dói por não ser permanente e suficiente o auxílio
emergencial a tantos que precisariam ficar em casa e, ao mesmo tempo, se
alimentar, pagar aluguel, e as contas de água, luz, telefone etc.
Jesus sofre na dor dos
enfermos e de suas famílias; no desamparo de quem vive nas ruas, não tem acesso
a recursos sanitários e atendimento de saúde; na expectativa de uma vacina que,
a conta gotas, demora a chegar para a maioria da população.
No Brasil, a maioria é
cristã. Cristãos avulsos, sem vínculos paroquiais ou comunitários. Por isso,
profanamos a Semana Santa. Em vez do lava-pés na quinta-feira, lavamos a alma
em dúzias de cerveja e o corpo em mares e piscinas. Em vez da memória do Senhor
morto na sexta-feira, o churrasco no quintal e a sofreguidão de quem acredita
que felicidade é a soma de pequenos prazeres. Em vez da Páscoa, a mais
importante festa cristã, um domingo de lazer no qual se espera apenas que o Sol
ressuscite dentre as nuvens e nos conceda a glória de seu brilho. E, muitas
vezes, promovendo aglomerações que, sutilmente, introduzem em nossas casas esta
indesejada convidada que, nos dias que correm, costuma se manifestar dias
depois de nossas confraternizações com familiares e amigos: a morte.
Os fatos históricos
celebrados pela Igreja na Semana Santa fazem parte dos arquétipos que regem a
nossa cultura ocidental. Olvidar-se que, no século 1, Jesus de Nazaré foi
perseguido, preso, torturado e assassinado na cruz por "passar a vida
fazendo o bem", como sublinham as Escrituras, é perder a própria
identidade. Sem paradigmas e referências, invertemos os valores. Trocamos a
religião pelo consumo, abraçando inclusive uma religiosidade prêt-à-porter,
de quem busca na igreja apenas o que convém à própria segurança psicológica.
Nenhuma preocupação com os pobres, nenhuma fome de justiça, nenhuma entrega à
oração. Nada disso exige que se cumpra o fundamental: amar o próximo como a si
mesmo. O que, nessa conjuntura, se traduz em solidariedade aos que padecem
doenças, fome, falta de recursos mínimos para saldar contas triviais.
Abraçar o caminho de
Jesus é ver no próximo a face de Cristo, sobretudo naqueles com quem ele se
identificou: "tive fome... tive sede... fui oprimido..". (Mateus 25,31).
Que transtorno! Então terei de encarar essa criança de rua que estraga a
paisagem da janela do meu carro como se visse o Menino Jesus? Terei de consolar
familiares de pessoas doentes e pagar o salário da faxineira ainda que ela não
venha trabalhar devido à pandemia?
Heloisa Vinhas,
brasileira de 23 anos que tentava vida melhor nos EUA, em março de 1996, ao
atravessar uma rua de Los Angeles, foi atropelada pelo carro de uma motorista
irresponsável, que fugiu sem prestar socorro. Atirada no asfalto da via
preferencial, Heloísa corria o risco de ser morta por outros veículos. Porém,
um jovem e famoso ator, Tom Cruise, que passava pelo local, manobrou seu
Porsche de modo a proteger o corpo da moça e chamou a equipe de socorro. Em
seguida, acompanhou Heloísa ao hospital e disse ao enfermeiro Jeffrey Furrows:
"Sou Tom Cruise e quero que esta mulher receba o melhor tratamento
possível. Eu pago a conta". A estimativa ultrapassava 20 mil dólares. Dias
depois, ele retornou para visitar Heloísa.
Tom Cruise jamais deve
ter imaginado que, um dia, faria o papel, na vida real, de um dos mais
destacados personagens bíblicos: o bom samaritano. Conta Jesus, no capítulo 10
do evangelho de Lucas (versículos 25 a 37), que "um homem ia descendo de
Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos assaltantes, que lhe arrancaram tudo
e o espancaram. Depois foram embora e o deixaram quase morto. (...) Um
samaritano, que estava viajando, chegou perto dele e teve compaixão.
Aproximou-se, fez curativos, derramou óleo e vinho nas feridas. Depois colocou
o homem em seu próprio animal e o levou a uma pensão, onde cuidou dele. No dia
seguinte, pegou duas moedas de prata e as entregou ao dono da pensão,
recomendando: "Tome conta dele. Quando eu voltar, pagarei o que tiver
gasto a mais".
Como imitar Tom Cruise e
o bom samaritano se perdemos a compaixão e a solidariedade? Preferimos Jesus
espetado no crucifixo da parede. Na vida real, ele e o bom samaritano
questionam nossas fantasias egocêntricas.
Infelizmente, muitos de
nós ainda pensam assim: "É Páscoa, mas não passo. Fico na minha. Entregue
ao ócio dos feriados. Se possível, vendo na TV um filme estrelado por Tom
Cruise. E não me peçam que pare o carro caso encontre um acidentado na estrada.
Sujaria tapetes e bancos, impressionaria as crianças, atrasaria a viagem.
Exceto se a fatalidade fizer com que o acidentado seja eu".
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