São
diabólicas as declarações de homens públicos reclamando da longevidade das
pessoas que supostamente quebraria o sistema e o Estado (Unsplash/Cristian
Newman)
Sociedades da abundância se tornam
desumanas com a obsessão de gerar riquezas e considerando como peso as pessoas
que entendem que já não podem contribuir
Maria Clara
Bingemer
A humanidade está
ficando mais velha, dizem as estatísticas. E isso parece que é bom, porque só
atinge a velhice quem vive mais tempo. Pelo menos parece ser o que todos
buscamos: viver muito, desfrutar até onde for possível das alegrias que
significam viver, existir. E adiar a morte, conhecida por muitas culturas,
notadamente a ocidental. A poesia a identificou como "a indesejada das
gentes". E mesmo os escritores bíblicos a chamaram por nomes negativos,
como o apóstolo Paulo: "a última inimiga a ser vencida"; e o autor do
último livro da Bíblia, o Apocalipse, que a inclui entre os quatro cavaleiros
que anunciam a catástrofe final, ao lado da fome, da guerra e da peste.
Por isso, a longevidade
é uma bênção e viver muitos anos um prêmio a que todos aspiram. Assim, o livro
do Êxodo exorta o israelita a honrar o pai e a mãe "para que se prolonguem
os seus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá". O livro dos Provérbios
promete que quem aceita as palavras divinas verá seus anos de vida
multiplicados, afirmando igualmente que o galardão da humildade e o temor do
Senhor são riquezas, honra e vida longa. No livro dos Salmos, é prometido a
quem guarda a língua e os lábios do mal e da mentira, praticando o bem, largos
dias para ver esse bem florescer e frutificar. E ao justo que invoca o Senhor,
este estará com ele na angústia, dando-lhe abundância de dias e mostrando-lhe a
salvação.
O Novo Testamento
seguirá essa rica tradição judaica. Toda a pregação e ação de Jesus de Nazaré é
curativa, procurando dar às pessoas mais tempo de vida, e vida plena. Assim é
que vemos nos Evangelhos curas de várias doenças, físicas e mentais. Há
narrativas do poder de Jesus ressuscitando mortos como o filho da viúva de Naim
e de seu amigo Lázaro. Nos escritos paulinos, é resgatada a orientação da
Bíblia Hebraica sobre a honra que é devida aos pais. A quem isso pratica, como
diz a Carta aos Efésios, será dada uma vida longa sobre a terra.
Não se encontrará no
texto bíblico nenhuma afirmação de depreciação à vida. Pelo contrário, há
sempre uma valorização da mesma, encarando o fato de ela ser longa como uma
bênção de Deus, que não quer a morte de ninguém, nem do pecador, mas que ele
viva. A tradição cristã seguiu fiel a essa revelação divina destacando-se pelo
serviço aos pobres, dando-lhes alimento e abrigo, a fim de sustentar-lhes e
prolongar-lhes a vida.
A Igreja foi pioneira na
edificação de hospitais que pudessem cuidar dos doentes e devolver-lhes a saúde
quando a morte os ameaçasse. E os pensadores de todas as configurações, assim
como os profetas judeus e cristãos, sempre denunciaram qualquer mecanismo que pretendiam
agredir a vida dos pobres e dos vulneráveis, trazendo-lhes a morte prematura e
indesejada, impedindo-os de chegar à plenitude dos seus dias, vendo os filhos
nascerem e crescerem e os filhos de seus filhos encherem a casa de alegria e
fecundidade.
Na verdade, o anjo da
morte é o mesmo que detém a paternidade da mentira e do mal. A morte é vista
pelo escritor bíblico como fruto do pecado, devendo, portanto, ser temida e
exorcizada como um mal. E a morte dos anciãos é sempre chorada e sentida, ainda
que haja o consolo de terem chegado ao fim de seus dias. Do mesmo modo, a morte
do jovem, por necessidade, por violência, por injustiça é repudiada e rejeitada
por todo aquele ou aquela que deposita sua confiança no Deus da vida.
Durante a pandemia que
vivemos, temos tido a oportunidade de ver os idosos sendo mais ameaçados pelos
efeitos devastadores do vírus que a todos amedronta. Vimos também cenas
edificantes de profissionais da saúde dando o melhor de seu saber e energias
para salvar essas vidas mais fragilizadas pela idade e devolvê-las ao convívio
de seus familiares e parentes. Grupo prioritário para a vacinação, foi bonito
ver os idosos aliviados e alegres por poder enfim ter acesso às doses daquela
que se tornou a única esperança contra esta grande ameaça que não poupou
nenhuma parcela da humanidade.
Por isso, sentimo-nos
tão chocados ao ouvir declarações de homens públicos reclamando da longevidade
das pessoas que supostamente quebraria o sistema e o Estado. A queixa de que
"as pessoas querem viver 100 anos", anatematizando o desejo vital
mais característico do ser humano agrediu nossos ouvidos e nossos olhos.
Incrédulos, nos custa crer no que ouvimos. A graça de poder viver mais tempo
então é vista como uma ameaça aos cofres públicos? O que incapacitou o
atendimento do setor público não foi a pandemia, mas sim o avanço na medicina e
o direito à vida? O Estado não aguenta que as pessoas hoje vivam mais e desejem
viver mais?
Difícil de acreditar. Em
todo caso, como resposta a isso, a carta encíclica Fratelli Tutti,
do papa Francisco, de recente publicação, responde a isto quando diz no nº 18
do texto que as pessoas já não são vistas como um valor...especialmente...se
"já não servem" (como os idosos). E no nº 19: "o abandono dos
idosos numa dolorosa solidão exprime implicitamente que tudo acaba conosco, que
só contam os nossos interesses individuais". E recordando as vítimas da
pandemia acrescenta no nº 35: "Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que
morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de sistemas de
saúde que foram sendo desmantelados ano após ano".
O papa considera que os
idosos estão entre os "exilados ocultos" de nossas sociedades da
abundância que se tornam desumanas com a obsessão de gerar riquezas e
consideram como peso as pessoas que entendem que já não podem contribuir. Viver
100 anos e até mais é justo e desejável, sim. Vidas humanas não são
descartáveis. A garantia de uma vida humana é o próprio Deus da vida que nelas
soprou seu Espírito e deseja vê-las cheias de dias, contribuindo com sua
experiência e sabedoria para a construção da memória sem a qual a humanidade se
perde e deteriora. Como diz o salmo 92: "Mesmo na velhice darão fruto,
permanecerão viçosos e verdejantes".
Nossa utopia deveria ser
não desejar que encurtem os dias das pessoas para que as contas fechem na
Previdência e no serviço público. Mas poder dizer como o salmista: "Já fui
jovem e agora sou velho, mas nunca vi o justo desamparado nem seus filhos
mendigando o pão".
Nenhum comentário:
Postar um comentário