Pandemia acentua as diferenças entre pobres e
ricos (Bruno Cecim / Ag.Para)
Trabalhador pobre e anônimo
constitui perfil social da maioria dos infectados e das mortes por Covid
Quando papa Francisco
questiona a inviolabilidade do direto à propriedade privada, como o fez na
homilia de Domingo da Divina Misericórdia, ao lembrar que entre os primeiros
cristãos "ninguém considerava sua propriedade o que lhe pertencia, mas
entre eles tudo era comum" é chamado de marxista. Mas não se abala e
reafirma: "não é comunismo, é cristianismo em estado puro".
Francisco apenas
assume a Doutrina Social da Igreja: "O princípio do uso comum dos bens
criados para todos é o 'primeiro princípio de toda ordem ético-social" (Laborem
exercens, 19). E continua: "O direito de propriedade nunca deve ser
exercido em detrimento do bem comum [...]. Onde existe conflito entre direitos
privados adquiridos e necessidades primordiais da comunidade, cabe ao poder público
trabalhar na sua resolução, com a participação ativa das pessoas e dos grupos
sociais".
Levantamento do jornal
Estado de Minas com base na Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios
(PNAD) Covid-19, do IBGE, publicado nesta semana comprova que não é bem assim.
Em Belo Horizonte, por exemplo a Covid-19 tem profissão: o setor de limpeza!
62% dos internados por um dia, em 2020, eram faxineiros, garis e auxiliares.
Empregados domésticos, diaristas e cozinheiros representaram 6,5% dos
internados. Em relação ao número de sedados, intubados ou em respiração
artificial as categorias representam 49% e 25% respectivamente. Esses
profissionais de alto risco, mal pagos, que utilizam o transporte coletivo
lotado, trabalham para proteger a vida dos outros, mas não têm prioridade à
vacinação.
A pandemia tem perfil
social. A esmagadora maioria dos infectados e das mortes é de gente pobre,
trabalhadora, anônima. Para piorar, o governo federal deixou de gastar R$ 80,7
bilhões dos 604 destinados para o enfretamento da pandemia. R$ 28,9 bilhões
deixaram de ser gastos com o auxílio emergencial (Instituto de Estudos
Socioeconômicos).
A saúde não é
mercadoria. O artigo 196 da Constituição Federal declara: "A saúde é
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação". A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a vacina
contra Covid-19 como bem público.
"Ter uma vacina
não é suficiente, precisa haver solidariedade global" (António Gutierrez).
A vacinação é cada vez mais desigual. A meta estabelecida pela OMS em parceria
com a Aliança Global de Vacinas (Gavi) de iniciar a imunização de 220 países
nos primeiros 100 dias do ano fracassou. Enquanto 87% dos imunizados são de
países mais ricos, apenas 0,2% da população dos países mais pobres foi
vacinada.
Os direitos de patente
foram criados para estimular a concorrência em tempos normais. Os tempos
atuais, porém, são excepcionais, são tempos de pandemia global. A Rede
Latino-americana e do Caribe de Bioética da Unesco (Redbioética) engrossa o
coro pela suspensão das patentes das vacinas a fim de garantir que as
populações mais vulneráveis sejam vacinadas e, assim, evitar novas mutações.
'Camarote vip' da
vacina. Rasgando a Constituição, num gesto de total imoralidade, a Câmara dos
deputados aprovou o Projeto de Lei 948 que permite a compra de vacinas contra
Covid-19 pelo setor privado antes da vacinação de grupos prioritários do Plano
Nacional de Imunizações. Jovens ricos serão vacinados antes de idosos e grupos
de risco.
O projeto tem apoio
dos empresários, coloca em risco a saúde das populações pobres e as
instituições pública, já que não há necessidade do aval da Anvisa. Entre tais
empresários estão 65 cujas fortunas individuais ultrapassam a casa do bilhão de
dólares. Somado o montante desse grupo corresponde a cerca de US$ 212 bilhões
(R$ 1,2 tri). Os bilionários brasileiros da área da saúde são os que mais
ganham dinheiro na pandemia. O valor médio saiu de US$ 1,64 bilhão em 2020 para
US$ 3,85 em 2021, crescimento de 134,76% (https://www.forbes.com.br). Milionários da
morte.
A taxação das grandes
fortunas está na Constituição Federal. Se fosse colocada em prática atingiria
apenas 5% da população e renderia mais de R$ 100 bilhões por ano. Valor
suficiente para financiar o Sistema Único de Saúde do país.
Enquanto milhões de
pessoas engrossam os números da fome, os ricos estão ficando mais ricos e os
pobres mais pobres, sem trabalho, sem vacina e morrendo. Cada dia é um dia
perdido para a vida.
E os cristãos, como
estão? Entre conivência e denúncia? Resistência e submissão?
Um grande defensor do cristianismo
em tempos sombrios, como papa Francisco, foi Dietrich Bonhoeffer. Por denunciar
os crimes de Hitler, foi enforcado no dia 9 de abril de 1945. Teólogo e pastor
luterano, combateu o controle da Igreja Luterana por Hitler e os cristãos
pró-nazistas: "O cristianismo se conformou muito facilmente com a adoração
do poder. Deveria gerar mais ofensa, mais choque para o mundo. O cristianismo
deveria se posicionar mais a favor das pessoas vulneráveis do que considerar a
hipotética moralidade dos fortes" (Bonhoeffer).
*Élio Gasda é doutor em Teologia,
professor e pesquisador na Faje. Autor de: 'Trabalho e capitalismo global:
atualidade da Doutrina social da Igreja' (Paulinas, 2001); 'Cristianismo e
economia' (Paulinas, 2016)
O texto reflete a
opinião pessoal do autor, não necessariamente do Dom Total. O autor assume
integral e exclusivamente responsabilidade pela sua opinião.
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