Quem
no dia a dia refaz os pequenos gestos de carinho e cuida dos sinais de
delicadeza entre as pessoas e com todos os seres vivos testemunha ressurreição
(Lina Trochez / Unsplash)
Quem,
durante esta pandemia, deixa sua zona de conforto e segurança e se arrisca a
organizar a solidariedade às pessoas e comunidades mais vulneráveis testemunha
a ressurreição
Quando, no Brasil,
atingimos a marca de mais de 12 milhões de pessoas que contraíram o coronavírus
e a cada dia sobe descontroladamente o número de pessoas falecidas, não é fácil
falar em esperança. Menos ainda, parece ter sentido em insistir em fazer festa.
No entanto, a festa encerra em si mesma algo de terapêutico e profundamente
humano que está no coração de todas as culturas. Mesmo em meio a todo
sofrimento provocado por esta pandemia, há uma semana, as comunidades judaicas
celebravam a festa da Páscoa. Nesta semana, são as Igrejas cristãs do Ocidente
que entram no clima da festa pascal.
Até hoje, nas
comunidades judaicas, a Páscoa é chamada Pezah zeman herutenu:
"a estação da nossa libertação". O cristianismo fala de "festa
da Ressurreição". A forma e o conteúdo das celebrações variam, mas a raiz
é a mesma. Na Páscoa judaica se recorda a noite na qual, antigamente, o Senhor
libertou os hebreus da escravidão. Os cristãos celebram essa memória e
acrescentam o memorial da morte e ressurreição de Jesus. Ser cristão(ã) é
testemunhar ao mundo a energia da ressurreição, atuante em Jesus e por seu
Espírito, em todas as pessoas que o acolhem.
Os poderes da morte
continuam agindo. O desamor organiza um mundo escravo do dinheiro e do poder. A
sociedade dominante se mostra cada vez mais cruel e sem compaixão. Celebrar a
Páscoa não vai mudar mecanicamente esta situação social, política e econômica
que vivemos. Não transformará os corações empedernidos de quem promove ou apoia
as desigualdades sociais e a injustiça estrutural sobre as quais a sociedade se
baseia. Nada poderá eliminar a pandemia, nem transformar a realidade se aqueles
que dominam a sociedade optam por salvar acima de tudo o comércio, mesmo à
custa de milhares de vidas.
Mas, no coração de muita
gente, os gritos de Páscoa ressoam teimosamente. No meio das mais áridas
paisagens, as flores resistem. Mesmo a lagarta mais asquerosa é chamada a uma
mudança radical. Rompe o casulo, ganha asas para voar e se transforma em uma
linda borboleta. É símbolo da vocação de todo ser humano para o caminho pascal
da liberdade.
Na Bíblia, o termo
ressurreição sempre aparece como sinônimo de levantamento. Ressuscitar é
levantar para a vida e para a liberdade. O termo começou a ser usado para
expressar a restauração da liberdade do povo. E Jesus o usou mas sempre para
indicar a vida nova que o Pai lhe deu, mas também a energia divina para
transformar o universo e renovar a vida de toda a humanidade.
O nosso saudoso mestre e
profeta Pedro Casaldáliga dizia que a missão dos discípulos e discípulas de
Jesus é espalhar ressurreição pelo mundo. Essa missão se realiza quando se opta
por viver em comunidade como parábola de um mundo novo. Essa é a vocação das
Igrejas cristãs: ensaiar uma nova forma de comunhão humana. No entanto, essa
missão transcende as fronteiras e muros das Igrejas.
Quem, durante esta
pandemia, deixa sua zona de conforto e segurança e se arrisca a organizar a
solidariedade às pessoas e comunidades mais vulneráveis testemunha a
ressurreição. Quem luta pela democratização da água como bem comum da
humanidade e de todos os seres vivos cultiva ressurreição. Quem luta contra a
energia nuclear e defende o progresso humano com justiça e a partir dos mais
vulneráveis semeia ressurreição. Quem no dia a dia refaz os pequenos gestos de
carinho e cuida dos sinais de delicadeza entre as pessoas e com todos os seres
vivos testemunha ressurreição.
Em cada atitude desta, é
o próprio Jesus ressuscitado que se revela vivo entre nós. Mesmo com o corpo
ferido e as chagas abertas nas mãos, nos pés e no peito, está vivo e
resistente. Seus discípulos se alegram em vê-lo vivo e lembram sua
palavra: Filhinhos, no mundo vocês sempre terão aflições. Tenham
coragem: eu venci o mundo (Jo 16, 33).
Marcelo Barros
Nenhum comentário:
Postar um comentário