Pastor é todo
aquele que cuida, doa a sua vida sem interesse, que sente a dor do outro com
compaixão, que é um igual, um parceiro, um conhecedor do outro (Myriams-Fotos /
Pixabay)
Frei Jacir de
Freitas Faria*
O Evangelho sobre o
qual vamos refletir hoje, Jo 10, 11-18, é carregado de simbolismos e de uma
metáfora muito conhecida de todos nós, a do Bom Pastor. Interessante, vivemos
quase todos em cidades. Não conhecemos ovelhas, mas, quando falamos de pastor,
algo ressoa dentro de nós como muito familiar. E é nisso que está o poder da
metáfora. Ela produz um sentimento coletivo que vem do sentimento e não da
razão.
Metáfora, substantivo
grego, capaz de transferir o sentido real de uma coisa para outra. Eu me lembro
sempre da médica oncologista, Dra. Aline Lauda, que cuidou como pastora da
minha mãe. Ela dizia: "Dona Luci é uma gatinha mimosa!". Gata minha
mãe nunca foi, pois não tinha quatro patas, mas amorosa, dedicada e carinhosa
sempre foi. Algumas "ovelhas" até me chamam de "gatinho de
Divinópolis", mas, nesse caso, tenho certeza de que não é uma metáfora.
Bom, voltemos à metáfora do pastor.
Feitos esses
esclarecimentos, quero propor duas perguntas. Quem, de fato, pode ser
considerado pastor como tal: o bispo, o padre, o papa, a mãe, o pai, o
político, o pastor de uma igreja evangélica? Quais atitudes revelam o ser
pastor de alguém?
Vou procurar responder
a essas perguntas com Jo 10,11-18. Primeiro, essa passagem não pode ser lida
sem considerar o capítulo 9 e os versículos anteriores, de 1 a 10. No capítulo
9, Jesus havia curado um cego de nascença. Ele não foi aceito pelos fariseus.
Jesus se encontra com ele no pátio do templo e se apresenta como sendo a pessoa
que havia curado a sua cegueira. O ex-cego professa a sua fé em Jesus como
Messias e, portanto, Pastor, assim como era visto o Deus-Pastor de Israel. O
messias viria como pastor. Lembra do Sl 22(21) "O Senhor é o meu
Pastor!". Em outras passagens do Segundo Testamento, Jesus é também
chamado de Pastor. Depois de, como pastor, fazer com que um cego o pudesse ver
como luz, no seu sexto sinal, Jesus, na sequência, diz a si mesmo dois eu sou.
"Eu sou a porta das ovelhas" (10,1) e "Eu sou o bom
Pastor”"(10,11). Outros cinco "Eu sou", relembrando o Pai, serão
ditos ao longo do evangelho de João.
O ex-cego estava no
pátio do templo judaico. Em pátios, conforme os costumes judaicos, as ovelhas
dormiam juntas. No recolher das ovelhas, cada pastor as chamava e as suas o
reconheciam pela voz. No templo de Jerusalém, sete vezes Jesus se revela no
Evangelho de João, mas não é reconhecido pelos judeus como messias e Filho de
Deus. Ele, que havia feito cego ver, dá a vida pelas suas ovelhas e elas o
conhecem.
Conhecer era um verbo
muito caro aos gnósticos, os quais ensinavam que, para obter a salvação, era
necessária conhecer a origem de onde viemos, a plenitude de luz. Bom, noutra
oportunidade, explicarei quem eram esses gnósticos.
Voltemos ao imaginário
da metáfora. Jesus diz que seus opositores são todos mercenários, aqueles que
não se importam com as ovelhas, deixando-as à mercê dos lobos vorazes, como os
fariseus. Estes vivem por interesses e não pelo cuidado. Jesus fez ainda outra
afirmativa: "tenho outras ovelhas de outro redil, devo conduzi-las
também". Eles está se referindo aos samaritanos, um grupo de judeus que
não eram aceitos no judaísmo. Lembra do encontro de Jesus com a samaritana (Jo
4,1-30)? Jesus, em João, recolhe a todos na sua missão de Salvador, o que fica
evidente com a sua morte na cruz, o pastor que dá a vida por suas ovelhas.
Bom, está na hora de
voltarmos às perguntas iniciais. Respondo às duas juntas. Ainda que apliquemos
aos personagens citados o título de pastor, muitas vezes eles não agem como
tais. Pastor é todo aquele que cuida, doa a sua vida sem interesse, que sente a
dor do outro com compaixão, que é um igual, um parceiro, um conhecedor do
outro. Eu ousaria dizer que, sem a poesia que o termo carrega, mãe é exemplo
perfeito do ser pastor.
Pena que para nós,
brasileiros, a imagem de pastor é de alguém que manda. E é por isso que temos a
síndrome da inferioridade. Nos submetemos com facilidade a bons pastores, mas
também a mercenários travestidos de pastores. Não conseguimos ver o outro como
igual, mas sempre como superior.
Porque cuida, o pastor
é o que fala a verdade. Trago aqui a saudosa memória de dom Helder Câmera, o
pastor dos pobres, que certa vez disse: "Quando dou comida aos pobres, me
chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de
comunista". Meu caro pastor, estamos vivendo suas palavras na Igreja.
Somos o que somos: pastores e mercenários.
A Igreja no Brasil
está dividida. Aos bispos, reunidos em assembleia, e ao povo brasileiro, o
pastor papa Francisco nos pede que deixemos de lado nossas "divisões e
desacordos" e que sejamos exemplos de unidade para superar não só o
coronavírus, mas também os outros "vírus que infectam a humanidade".
Entendeu a metáfora? Ah, ele também lembrou aos bispos e a nós que "a
caridade nos incita a chorar com os que choram e a estender a mão,
principalmente aos mais necessitados, para que voltem a sorrir".
A sociedade brasileira
está dividida, quebrada em meio aos pastores e lobos mercenários. Não gostaria
de terminar com essa triste constatação. Quisera que tudo fosse diferente. A
nossa essência é a do cuidado, do ser pastor. Quando a negamos, sofremos
individual e coletivamente. Que Deus, o Pastor por excelência, nos ilumine na
nossa missão de ser pastores e pastoras sempre.
Doutor em Teologia Bíblica pela
FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico
de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de
Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor
de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção
apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte
(Vozes, 2019)
Fonte:domtotal.com
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