Contrário
aos poderosos, Jesus age como Deus criador que pode acalmar o mar e o vento
(Free Bible Images/Lumo Project)
Frei
Jacir de Freitas Faria, OFM*
O
evangelho sobre o qual vamos refletir hoje é Mc 4,35-41. Nos capítulos
anteriores, Jesus entra na sinagoga para ser reconhecido pelos demônios e ser
confrontado com as lideranças judaicas dos grupos dos fariseus, saduceus e
herodianos. Nessa ocasião, Jesus entra também na casa de Pedro, onde cura sua
sogra, doentes e é confrontado pela sua família.
Nessa
passagem, o ambiente é outro, o mar. Por que o mar? Jesus está com os
discípulos num barco. Jesus dorme. Os discípulos têm medo? Medo de quê? Medo do
vento. Você teve medo em sua vida? Qual a origem do medo? Jesus e os discípulos
haviam passado para a outra margem. Você já mudou de rumo, de margem em sua
vida?
Passemos
às possíveis respostas. A cena parece interessante. Jesus, na sua humanidade,
dorme tranquilo. Os apóstolos o protegem. Mar e vento sopram violentamente.
Esses representam o poder (mar) e o espírito (vento) do mal. Leviatã era o
demônio do mar, assim como Azazel era o demônio do deserto. O rei selêucida Antíoco
IV Epífanes, que significa "revelação de Deus" e considerado uma
"besta’ pelos judeus, julgava-se "Senhor do vento e do mar".
Entre os romanos, do cônsul Pompeu se dizia que o mar e o vento lhe obedeciam.
Contrário
aos poderosos, Jesus age como Deus criador que pode acalmar o mar e o vento. Em
Jesus, Deus se desperta do sono para reger o mar. Contrário a Jonas, que dormia
para não enfrentar os perigos do mar. Às palavras de Jesus: silêncio e quieto,
o vento serena e tudo volta ao normal.
Em
seguida, Jesus chama a atenção dos discípulos: "Não tendes fé? Nisso está
a questão central da passagem: a falta de fé dos discípulos. O medo dos
discípulos está relacionado com a falta de fé. Na pergunta dos discípulos, por
quem é este que até o mar e o vento obedecem, está a prova de que eles não
foram capazes de reconhecer a ação de Deus em Jesus.
Os
discípulos começaram a romper com o mar, mas ainda não foram capazes de
compreender o caminho de Jesus. O mar, os opressores, ainda os aterrorizam. Mar
é o ambiente caótico da ideologia do sistema opressor, que ainda está presente
na vida dos discípulos. Eles ainda não têm fé suficiente para romper com ele.
As
primeiras comunidades estavam se aproximando dos gentios que ficam na outra
margem. Uns defendiam o caráter judaico da missão de Jesus, outros, não. Havia
o conflito entre as propostas de Pedro e as de Paulo. Jesus estava
"dormindo", isto é, morto, parecia ausente. A barca dos discípulos,
das primeiras comunidades, estava à deriva. Muitos cristãos estavam aderindo ao
império romano (SOARES, Armando Sebastião Gameleira; JÚNIOR, João Luiz Correia;
OLIVA, José Raimundo. Marcos. São Paulo: Fonte Editorial/Santuário, 2013, p.
189).
O
objetivo de Marcos, com essa passagem, era convocar a comunidade para ter fé em
Jesus ressuscitado da morte, vivo e atuante na comunidade com a força de Deus,
capaz de dominar o caos e de vencer as potências infernais satânicas que
ameaçam as comunidades. No mar da vida, encontramos muitas dificuldades. Sem a
fé podemos afundar, mas quem crê está salvo. O barco é a comunidade, que
sofre tormentos de todos os lados, mas que precisa ter fé.
O que
Marcos quis dizer para nós, hoje, com essa passagem? Permita-me apontar duas
situações, uma de cunho pessoal e outra, comunitária, ainda que as duas se
entrelacem.
Na
dimensão pessoal, ficando com o sentindo existencial, tão bem expresso naquela
música de Nelson Mota, tão cara às comunidades: "Se as águas do mar da
vida quiserem te afogar, segura nas mãos de Deus e vai. Se as tristezas desta
lida quiserem te sufocar. Segura na mão de Deus e vai. Segura na mão de Deus,
segura na mão de Deus, pois ela, ela te sustentará. Não temas, segue adiante, e
não olhes para trás. Segura na mão de Deus e vai". A fraqueza faz
parte de condição humana. Ninguém é super-homem ou supermulher. Precisamos
reconhecer o nosso limite, mas acreditar sempre. Como disse o papa Francisco,
recentemente, aos sacerdotes que se creem os tais, mas que vale para todos nós.
Ele disse: "Os sacerdotes super-homens terminam mal, todos eles. O
sacerdote frágil, que conhece suas fraquezas e fala delas com o Senhor, esse
irá bem".
Na
dimensão social e coletiva, chamo a sua atenção para a atual conjuntura
brasileira, dividida entre os projetos de construção da sociedade. Estamos,
como na comunidade de Marcos, com medo e sem saber a qual projeto seguir. Havia
dúvida se deveria "usar máscara ou não", pois o medo os paralisava e
os impedia de passar para a outra margem. Passamos a vida inteira trocando de
margem: do bebê para a criança, da criança para o jovem, do jovem para o
adulto. Com medo não se vence as passagens!
É bem
verdade que o medo faz parte de nossa condição humana. Quem disse que nunca
teve medo, está mentindo. Coragem, diria Jesus, para passar da margem do
sofrimento para a alegria, da fome para a abundância, da injustiça para a
justiça, da política desonesta para a verdadeira política.
Por
fim, o segredo, na passagem do mar da vida, é levar Jesus conosco na barca,
pois só ele pode cuidar de nós diante dos ventos nefastos e dos demônios do
mar. Ele é como uma máscara que nos protege na travessia, na turbulência vida
infestada de nefastos vírus. Segura nas mãos de Deus e vai. Boa viagem. Paz e
bem.
*Doutor em Teologia
Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício
Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação
Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez
livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem
morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora
da Boa Morte (Vozes, 2019). No nosso canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e
Apócrifos ou
https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFaria Biblia Apocrifos.
Fonte: domtotal.com
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