O ensinamento de Jesus revela-se, antes de tudo, como um encontro inspirador que o move a se aproximar de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada uma carrega dentro de si (Jackson David / Pixabay)
"Jesus
viu uma numerosa multidão e teve compaixão (...) começou a ensinar-lhes muitas
coisas"
Os discípulos
regressaram da missão à qual Jesus os tinha enviado e Herodes acabara de
assassinar João Batista. Jesus se retirou para descansar com os discípulos, do
outro lado do lago. Precisavam tomar distância, conversar juntos e de maneira
tranquila sobre esse momento dramático, em um espaço sossegado, mais íntimo e
profundo, sem a urgência permanente que a pressão do povo introduzia em suas vidas
e não tendo tempo nem para comer. Não eram pessoas das cidades importantes que
procuravam Jesus. Diz o texto de Marcos que saíram "de todos os
povoados" e foram "correndo", com pressa, com expectativa e
esperança, ansiosas para encontrar-se com Ele.
Ao ver a multidão,
Jesus se comoveu até as entranhas, porque "andava como ovelhas sem
pastor", com fome, oprimida pelos impostos, desconcertada diante do
presente e com medo difuso diante do futuro ameaçador e inseguro. E Ele começou
a ensinar-lhes longamente, muitas coisas, de tal maneira que as horas foram
passando sem se darem conta.
Jesus não só transmite
um ensinamento, senão que cria uma relação nova com o povo e de uns com outros,
segundo o espírito do Reino. Todos somos feitos para nos encontrar com um Tu
inesgotável, que ilumine nossa existência e nos transforme inteiramente, de tal
maneira que sejamos capazes de estabelecer relações novas com nossa própria
história pessoal, com os outros e com toda a criação.
O ensinamento de Jesus
revela-se, antes de tudo, como um encontro inspirador que o move a se aproximar
de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada uma carrega
dentro de si. Trata-se de um encontro que não vem envolvido em roupagens
exóticas nem em rituais frios; sua grandeza se expressa numa proximidade tão
simples e humana, onde a interação de sentimentos e afetos engrandece a todos.
Nesse sentido, o novo
ensinamento de Jesus tem a marca da compaixão. Um dos sintomas de
desumanização, que está revelando seu triste rosto no contexto atual, é o fato
de deixar-nos de vibrar com o que os outros vivem, viver como alheios uns dos
outros, blindar-nos uns frente aos outros, ou seja, incapacitar-nos para a
compaixão.
A compaixão está cada
vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e
com o outro distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa
sociedade para responder aos desafios atuais.
Vivemos num contexto
social onde somos ameaçados por uma forma sutil de apatia. Aqui a compaixão se quebra
com excessiva facilidade, se atrofia e se transforma em "sem-paixão".
Com isso, nos nossas relações se desumanizam.
Tal
"sem-compaixão" é uma enfermidade social, um problema coletivo, algo
que vai se fechando mais e mais, de tal modo que as pessoas vibram com menos
gente, em círculos íntimos, e unicamente com quem faz parte do seu
"gueto".
Acostumamo-nos com a
lógica deste mundo, que esvazia nossa capacidade de nos surpreender ou de nos
inquietar; impermeabilizamos o coração frente à magnitude das feridas sociais,
conformando-nos em responder "não há nada que fazer". Vão
desaparecendo os horizontes de sentido que incluem a alteridade. Qualquer
implicação com o outro implica suspeita, frieza, distancia, preconceito...
Não basta a
sensibilidade ou o sentimento. Não ficamos indiferentes quando a dor dos outros
entra em nossas salas de estar. Mas, tão rápido como chega, o sentimento se
vai, e não nos mobiliza porque não tem pontos de conexão com a realidade da
exclusão.
A "privatização
da vida", a sensação de impotência diante das tragédias, a distância
midiática (informação fria da realidade que não nos afeta e não desperta nossa
paixão), a distância física, a não-comunicação (não há tempo para falar e
escutar, os eletrônicos povoam nossos silêncios, o ativismo impede dedicar-nos
uns aos outros), a falta de motivação (por quê deixar o outro invadir minha
vida ou encher-me de inquietação?), a dificuldade para compreender a diferença
(transitamos nos círculos de iguais ou semelhantes, compartilhamos gostos, modas,
inquietudes, status, temos problemas comuns e metas similares, usamos produtos
parecidos, lemos os mesmos livros e vemos os mesmos filmes), etc..
Quem olha para as
manchetes de notícias, as escolhas e comportamentos atuais, talvez se deixe
convencer de que a compaixão está perdendo a referência no elenco dos
sentimentos humanos mais nobre. Afinal, produtividade, eficiência,
competitividade, revelam-se pobres de atitudes compassivas.
No entanto, somos
seguidores(as) do Compassivo; Jesus não passa friamente por nada. Ele não passa
indiferente ao lado da fome, da doença, da exclusão, da morte, não passa
friamente ao lado das multidões que vivem como ovelhas sem pastor. Seu
sentimento está sempre engajado: Ele é o homem da prontidão de sentimentos, que
deixa transparecer uma profunda sensibilidade. Sente-se tocado pela dor e
miséria.
E jamais fica em
sentimentalismos supérfluos; sua empatia e simpatia extravasam-se em ações
comandadas pela compaixão: ela flui e jorra de seu coração.
Os Evangelhos destacam
os profundos sentimentos de humanidade, compaixão, empatia, ternura e
solidariedade misericordiosa de Jesus. Muitas vezes é mencionado que o Senhor
foi "comovido até as entranhas" e teve "frêmitos de
compaixão"; trata-se de sentimento eminentemente humano.
Até podemos fazer
referência origem etimológica da palavra compaixão. E aqui é muito pouco o
apelo ao vocábulo latino cum-passio (padecer com). É preciso
um novo passo. Para "compaixão" é preciso ir até o grego antigo. Lá a
compaixão está ligada às disposições maternas de conservar a vida. Naquela
língua os termos "compaixão" e "útero" são equivalentes.
Assim como o ventre materno acolhe a vida, envolve-a, protege-a e a faz nascer,
algo semelhante fez o Senhor ao aproximar-se daquelas "ovelhas sem
pastor": suscitou-lhes a esperança com expressões de amor fraterno. Foi
uma aproximação generativa, isto é, gerou impulsos para uma nova vida.
Num mundo em que o
anonimato impera e uma falta de compromisso com o outro parece predominar, é
preciso ativar a compaixão, que começa pela capacidade de fixar o olhar nos
rostos, desmontando os pré-juízos, ou pela possibilidade de perguntar ao outro
por sua vida, seus sonhos, suas preocupações, seus desejos e sua dor. Procurar
entender seus motivos sem passar logo a interpretá-los, a etiquetá-los ou a
julgá-los. Aprender a escutar suas histórias e a acompanhar suas inquietações.
A moção de compaixão
permite que do coração humano brote a "excentricidade".
A experiência cristã
não nos imuniza contra a contaminação do "amor próprio, querer e
interesse"; mas a pulsão solidária e compassiva para com o pobre e
excluído, permanente e profunda, se converte na fornalha que purifica a
insaciável autoafirmação e interesses que todos temos, e vai gestando, pouco a
pouco, personalidades excêntricas, livres do domínio despótico do ego.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração: Ser compassivo implica buscar e ativar uma disposição em sair
das fronteiras do conhecido e do habitual, dos circuitos familiares e das
dinâmicas mais rotineiras, para entrar em sintonia com as pessoas que são
vítimas de estruturas sociais e políticas que geram miséria, dor e exclusão.
Compaixão ou
indiferença? Eis o desafio! Qual delas se manifesta com mais constância em seu
dia-a-dia?
*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e
atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
Fonte:dom total.com
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