ESCRAVIDÃO, A ORIGEM DO RACISMO
Negro castiga negro:
aberração da herança de ódio deixada pela colonização portuguesa
O paradoxo da época pós-nazista é um
racismo sem raças
Donatella Di
Cesare*
Hoje não se pode ignorar
a dupla condenação que atingiu o racismo: a da ética, que em Nuremberg
pronunciou um juízo inapelável, e a da ciência, que indicou que a
"raça" nada mais é do que uma invenção. O resultado evidente dessa
dupla condenação está na transformação em tabu da palavra "raça" que,
tornando-se suspeita, é sistematicamente evitada e só aparece entre aspas, para
se tomar distância dela. Não é por acaso que muito poucos admitem ser
"racistas".
Isso significa que o
racismo não existe mais? Que se trata de um fenômeno do passado,
definitivamente superado, do qual eventualmente reaflora alguma
"regurgitação"? Nesse caso, só sobreviveria em alguma franja da
extrema direita ou em algum marginal grupo supremacista, que, em última
análise, não têm influência efetiva dentro da sociedade democrática.
Infelizmente, porém,
este não é o caso. O racismo pode conviver com a democracia; se reajusta
alavancando-se na indiferença, no tédio, na ignorância. É uma violência de
baixa intensidade, às vezes hilária, despreocupada e não menos cruel, que
atinge os mais frágeis, os imigrantes, os estrangeiros, os pobres, os sem-teto,
os portadores de deficiência, os diferentes. É um fazer de conta que se
acredita que os atos perpetrados são inofensivos e causa ressentimento quando
são reconhecidos como ódio. Piadas, alusões, insinuações, deslizes,
subentendidos, que expressam, no entanto, o desejo obscuro de humilhar e podem
facilmente levar à violência aberta.
O paradoxo da época
pós-nazista é um racismo sem raças, para o qual não é mais suficiente aquela
que os estudiosos chamam de "definição restrita". Situa-se nessa nova
direção de estudo a pesquisa de Aurélia Michel, antropóloga francesa
especializada em América Latina, sensível às questões da desigualdade, que em
seu livro Il bianco e il negro. Indagine storica sull'ordine razzista (O branco
e o negro. Investigação histórica sobre a ordem racista, em tradução livre),
recém-publicado pela editora Einaudi, remonta às origens da discriminação. A
tese básica é que "a instituição raça" substitui a mais antiga
"instituição da escravidão". Em outras palavras: quando, no limiar da
modernidade, a escravidão entra definitivamente em crise, outra forma seletiva,
mais sutil e perversa, se insinua e se firma até se tornar o critério da
arquitetura política e da ordem do mundo.
Nesse sentido, para além
da biologia, a “raça” existe e é aquele procedimento único que caracterizou a
ocidentalização do mundo. De um lado o branco e do outro o "negro",
termo de origem portuguesa, que mescla duas metáforas discriminatórias, a mais
antiga da cor e a da escravidão. A palavra "negro" assume um valor
decisivo porque, se por um lado indica a equivalência entre escravos e
africanos, por outro marca o ponto de virada, o momento em que a "raça"
substitui a escravidão. Assim, Michel pode reiterar: “é por terem escravizado
os africanos que os europeus se tornaram racistas”. Entende-se então por que,
após um primeiro capítulo dedicado à economia escravista, e sua história de
repressão, assumem grande importância aquelas partes do livro em que é
reconstruída a relação entre a Europa e os continentes africano e americano.
Que crimes perpetraram portugueses e castelhanos nas rotas do Atlântico
meridional no século XV? O "tráfico de negros", aquele capítulo sombrio
e terrificante da história europeia, não é contado por um interesse de tipo
antiquário, mas porque, apesar das rebeliões, revoltas e finalmente da
revolução haitiana de 1794, o império da escravidão nunca realmente acabou.
Aliás, é graças à nova discriminação da "raça" que pode perpetuar-se,
contribuindo assim para a construção do "reino do Branco".
O que Michel pretende
mostrar, portanto, é a centralidade, a violência e a continuidade da
discriminação em nossa história. A aparente saída da escravidão da antiguidade
conduz a uma nova ordem "racial" que nunca foi tocada, nem mesmo
depois de 1945. O nó que resta é a exclusão do parentesco. Nessa ordem, o outro
não é o inimigo, mas o não-parente. O que é muito mais grave. A
"brancura" ainda é o cânone econômico, ético e político do mundo
ocidental e ocidentalizado. O "negro" deve permanecer em seu lugar,
ocupar posições sociais subordinadas, funções econômicas marginais, sem
pretender ser aceito como igual. Está eternamente em processo de civilização.
Sua própria "cultura" é uma ameaça. Podemos também ajudá-lo a
"integrar-se", podemos também considerá-lo nosso "amigo",
mas nunca lhe daremos a cidadania. Porque não ama nossa nação o suficiente e
ainda tem que provar - mesmo que seja menor de idade - que não solapa em sua
base a "brancura" ocidental.
Esses mecanismos
implacáveis sobrevivem, portanto, até mesmo na atual democracia. Isso leva
Aurélia Michel a dizer que “a raça é uma ordem social global, a nossa ordem
global”. No geral, o livro, que pode ser considerado uma apaixonante
reconstrução histórica da "raça", oferece perspectivas inéditas e
ajuda a pensar sobre uma questão complexa. Talvez o único ponto que se possa
criticar é que, nessa visão, outros motivos são deixados de lado, como o da religião
(como no caso do antijudaísmo ou da islamofobia), que também continua a
desempenhar um papel importante na discriminação.
*Donatella Di Cesare,
filósofa italiana, em artigo publicado por La Stampa. A tradução é de Luisa
Rabolini
Fonte:domtotal
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