“As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63)
Segundo o evangelista João, Jesus resume assim a crise que
vai se estabelecendo em seu grupo: “As palavras que vos falei são espírito e vida”. Jesus
desperta um “espírito novo” naqueles que o seguem; suas palavras tem um peso e
ativam vida; são palavras inspiradoras porque brotam do mais profundo do seu
coração; são palavras provocativas, que colocam em questão o verdadeiro motivo
daqueles que o seguem.
Por isso, elas despertam uma ressonância no interior dos
ouvintes e desencadeiam um movimento de ruptura com o antigo, movendo-os a um
distanciamento das “palavras domesticadas” pela tradição e pela religião. As
palavras de vida pronunciadas por Jesus podem gerar um movimento capaz de
orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.
Um dos maiores dramas de nossa atual cultura é que temos
esvaziado as palavras de sentido, e, com frequência, as utilizamos para
expressar coisas totalmente diferentes e até opostas ao seu significado
original. Chamamos liberdade o
que na realidade é arbitrariedade e imposição; felicidade passou
a significar consumo e vaidade; a qualidade de vida está
ligada à quantidade de coisas; negócio passou
a ser grosseira especulação e roubo; ordem estabelecida
à dominação e à injustiça; diplomacia ao
engano e à mentira; sinceridade à
falta de respeito; amor à
atração física, ou ao desejo de posse... Uma gravíssima desvalorização da
palavra acaba se expressando na desvalorização da ética, da política, da vida.
Há palavras que, de repente, se põem de moda entre nós,
expressões felizes que por força da repetição acabam se esvaziando.
Os “comerciantes da morte” mataram as palavras, arrancaram
dela o coração e as transformaram em meras máscaras ocas, em sons sem alma, com
os quais pretendem nos seduzir, nos enganar e nos manipular. Não há pior
escravidão que a mentira; ela oprime, tortura, impede sair de si mesmo para
viver uma comunicação sadia com quem pensa, sente e ama diferente. Não há nada
mais desprezível que a eloquência de uma pessoa que não diz a verdade. É
preciso libertar a consciência dizendo sempre a verdade. É preferível perturbar
com a verdade que agradar com adulações.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez
menos palavras. O
leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de
encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes
questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura
de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar
da gestão das palavras de
sabedoria que inspiram nossa vida. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a
uma civilização que teme o silêncio (há
demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco.
Jornais, revistas, tevê, outdoors, celular, watsapp,
internet, correio eletrônico... há demasiado palavrório. Carecemos
de profundidade. Se, segundo o Gênesis, Deus fala e com sua Palavra cria,
as palavras nos fazem sentir como “deuses”: com elas podemos fortalecer a vida
ou asfixiá-la, expressar amor ou ódio, elevar o outro ou afundá-lo...
Há palavras que são golpes, bofetadas; e palavras que são
carícias, estímulos, abraços. Com as palavras podemos criar ou destruir, dar
vida ou matar. A palavra pode se converter em insulto e condenação, mas também
em canção ou poema que cultiva a sensibilidade e nos abre à beleza.
“Tomem cuidado contra a murmuração inútil, e da
maledicência preservai a língua. Não há palavra oculta que caia no vazio e a
boca mentirosa mata a alma” (Sab 1,11).
No momento final do discurso no cap. 6, de João, Jesus busca
aclarar as condições de pertença à sua nova comunidade : adesão a Ele e
revestir-se de sua proposta de vida; deixar que Sua Palavra desperte
palavras mobilizadoras em nosso íntimo, palavras abertas, oblativas e que
apontem para o sentido de nossa própria existência.
Mas, não basta estar em seu grupo para garantir a adesão ao
modo livre de ser e viver de Jesus; há aqueles que resistem aceitar seu
espírito e sua vida. Sua presença em torno a Jesus é fictícia, seu seguimento
se restringe a um ritualismo vazio. A verdadeira crise no interior do
cristianismo sempre é esta: cremos ou não cremos em Jesus? Somos seguidores(as)
de uma Pessoa ou meros cumpridores de alguns ritos, normas, doutrinas… que nos
fazem estéreis e esvaziam todo compromisso com os outros?
São muitos os que resistem aceitar o “espírito e vida” de Jesus. O narrador do Evangelho
deste domingo nos diz que “muitos discípulos o
abandonaram e não mais andavam com Ele”. É na crise que se
revela quem de fato são os verdadeiros seguidores de Jesus. A opção decisiva é
sempre esta: quem volta para trás e quem permanece com Ele, identificados com
seu espírito e sua vida? Quem está a favor e quem está contra Seu projeto em
favor da vida?
Para os despreparados (imediatistas) a crise representa
estresse e colapso. Para os atentos (contemplativos), significa um trampolim
para o aprendizado e para o novo.
A crise provoca
uma decisão que abre um
novo caminho de crescimento e rasga um horizonte de possibilidades que vão
moldando um novo estilo de vida. Não havendo decisão, protela-se
a crise, e as forças
positivas nela contidas nunca chegam a se manifestar.
Crise é o momento crítico da decisão, onde
algo é deixado para trás e se abre um patamar superior que possibilita uma nova
forma de vida.
Nos momentos de crise vive-se
com especial intensidade o “kairós” (momento
de graça), onde o essencial surge
com mais clarividência. Tudo o que é acidental, periférico, perde sua
consistência e validade. É chance de vida nova num outro nível e dentro de um
horizonte mais aberto.
Se compreendermos que a crise é o lugar
generoso onde se prepara o amanhã, então teremos a oportunidade de amadurecer e
de dar um salto para dentro de um horizonte mais rico de vida, humana e divina.
Nesse sentido, a crise é
oportunidade para despertar nossa humanidade; ela
nos humaniza.
O grupo que seguia Jesus começa a diminuir, mas Ele não teme
o fracasso, não se irrita e não pronuncia nenhum julgamento contra ninguém. Só
faz uma pergunta aos que permanecem junto a Ele: “Vós também quereis ir embora?”
Seguimento é questão de decisão pessoal, é
exercício da liberdade.
Esta é a pergunta que
ressoa no interior de cada um de nós: Quê queremos? Por quê
permanecemos? É para seguir a Jesus, acolhendo seu
espírito e vivendo seu estilo? É para trabalhar em seu projeto? A
resposta de Pedro é exemplar: “Senhor, a quem iremos nós?
Tu tens palavras de vida eterna”. Os que permanecem o
farão por Jesus. Só por Ele; comprometem-se com Ele. O único motivo para
permanecer em seu grupo é Ele. Ninguém mais.
O messianismo triunfal fica definitivamente excluído. Jesus
não busca glória humana ou divina, nem a promete aos que o seguem. Segui-lo
significa renunciar toda ambição, e aceitar a entrega total de si mesmo em
benefício dos outros.
Texto bíblico: Jo.
6,60-69
Na oração: fazer memória das crises na vida
pessoal: elas foram ocasião para uma mudança ou acomodação, movimento em
direção do novo ou retraimento? Medo ou ousadia? Criatividade ou “normose”?
- Que implicações tem para sua vida o fato de ser seguidor(a)
de Jesus? Faz diferença?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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