A
Bíblia está cheia de histórias de chamados, que muitas vezes, na pastoral, são
tomados como motivadores para a descoberta de uma vocação particular. (Imagem:
Mateus Campos Felipe / Unsplash)
A Igreja católica do Brasil dedica o
mês de agosto à oração pelas vocações. Ela aprendeu essa prática com o próprio
Jesus, segundo o evangelho de Mateus.
“A quem enviarei?
Quem irá por nós?” (Is 6,8)
Geraldo De Mori,
SJ *
Já há algum tempo a
Igreja católica do Brasil dedica o mês de agosto à oração pelas vocações. Ela
aprendeu essa prática com o próprio Jesus que, segundo o evangelho de Mateus,
“ao ver as multidões, teve compaixão, pois pareciam como ovelhas sem pastor.
Então disse aos seus discípulos: a messe é grande, mas os operários são poucos.
Orai ao Senhor da messe que envie operários para a sua messe” (Mt 9,36-38). Em
geral, a pastoral vocacional da maioria das dioceses, paróquias e congregações
religiosas, identifica esse apelo do Senhor com vocações específicas:
ministério ordenado, vida religiosa, vida familiar ou conjugal, serviços
eclesiais diversos. Certamente essas vocações são todas necessárias à Igreja e
é necessário ajudar os/as cristãos/ãs, sobretudo os/as adolescentes e jovens, a
descobrirem o caminho para o qual Deus os chama. Porém, antes de assumir alguns
desses caminhos de realização da própria existência ou antes de se colocarem a
questão do serviço ao qual são chamados na construção do corpo de Cristo, é
importante levá-los a descobrirem a própria existência humana como chamado.
Com efeito, a Bíblia
está cheia de histórias de chamados, que muitas vezes, na pastoral, são tomados
como motivadores para a descoberta de uma vocação particular. No entanto, por
detrás dessas histórias todas há uma maneira de Deus dizer-se, ou, como se fala
na teologia, de revelar-se. Segundo alguns historiadores da religião, o divino
ou o transcendente foi descoberto pela humanidade como “sagrado” ou “santo”,
despertando “temor” e “tremor”, atraindo ou afastando, podendo ser uma potência
benéfica ou maléfica. Por isso, em geral, o “sagrado” foi identificado com
aquilo que é “separado”, que não pertence a esse mundo, que, por sua vez, é da
ordem do “profano”. Nesse sentido, as religiões nas quais se descobriu o
“sagrado” são tidas como religiões epifânicas, pois o sagrado irrompe, seja em
lugares tidos como santos, como uma montanha, um rio, seja em objetos, criados
ou não por mãos humanas, seja em pessoas, pelo ofício que exercem, como os
sacerdotes, as sacerdotisas, os adivinhos, os profetas.
Essa forma antiga e,
se poderia dizer, quase que original de irrupção do sagrado, continua ainda
presente na maioria dos imaginários religiosos. A antropologia religiosa a
identifica como determinada pela visão, que é o sentido a partir do qual ela se
forma. As pessoas buscam o maravilhoso, querem ver. Mas, além dessa atração, o
sagrado também provoca repulsão, medo, pois, como é da ordem do mistério, pode
esconder segredos que, caso sejam conhecidos ou violados, podem despertar a ira
divina. Essa ambivalência do sagrado, que atrai e repulsa, caracteriza a
maioria das religiões mágicas, que querem controlar o sagrado com rituais de
todo tipo, em geral, marcados pela ideia do sacrifício. O sacrifício é
justamente o “tornar sagrado”, ou seja, separar algo para a divindade, seja um
objeto, seja dinheiro, seja uma oferenda, seja algo que é caro ou custoso à
pessoa o oferece, pois implica renúncia. De fato, várias práticas religiosas
creem que o “sacrifício”, que é penoso e se oferece a Deus, pode alcançar um
benefício.
A fé bíblica, apesar
de admitir sacrifícios e possuir uma série de rituais próprios às religiões
marcadas pela ideia do sagrado, promove, a partir da teologia da vocação, uma
revolução na compreensão de Deus e na relação que com ele o fiel é chamado a
ter. Com efeito, já no relato bíblico da criação do capítulo 2 do livro do
Gênesis, Deus não é o Totalmente outro, que causa “temor” e “tremor”, mas o
oleiro que modela Adão, a quem confia o cuidado de um jardim, criado para ser
sua moradia e a de todos os demais seres vivos, que nele vivem em harmonia.
Deus “passeia toda tarde” nesse jardim (Gn 3,8). A ruptura dessa relação
harmoniosa, conhecida como queda original (Gn 3), interrompe essa relação
estreita entre Deus e aquele que ele criou para viver em comunhão com Ele, com
os demais humanos e com toda a criação. Um longo percurso será então percorrido
pelos descendentes de Adão e Eva, no qual Deus lhes mostrará como manter-se em
sua presença na mesma harmonia para a qual os havia criado, através de um povo
que ele escolheu para nele abençoar todas as nações da terra (Gn 12,3). E toda
a história desse povo é a de uma relação de aliança, que supõe uma ligação
íntima com Deus e também relações de fraternidade e justiça com os demais seres
humanos e com os demais seres vivos e a criação inteira. Nessa história,
inúmeras pessoas vão participar. Em geral, o processo de aprendizagem no qual
Deus introduz esse povo e, através dele, a humanidade, é feito através de
homens e mulheres especialmente chamados para isso. Esse chamado, ao qual a
tradição bíblica e eclesial compreendeu como vocação, é sempre marcado por
relações com Deus e com os demais. Em Jesus, esse caminho adquire um
amadurecimento e uma plenitude que podem doravante ser compartilhados pelo
conjunto dos que nele creem e buscam segui-lo, tornando suas vidas parecidas à
dele. Para isso, quem crê conta com a assistência do Espírito Santo, que é quem
move os corações e os modela cristicamente.
Portanto, mais que
buscar o sagrado e querer movê-lo a ser benéfico, através de sacrifícios, a fé
bíblica, e de modo ainda mais radical, a fé cristã, é uma fé relacional,
interpessoal. O autor da carta aos Hebreus compreendeu isso tão bem que diz que
em Jesus foram abolidos todos os sacrifícios. Jesus ofereceu a Deus o único
sacrifício agradável, que foi sua própria vida enquanto manifestação de uma
entrega absoluta ao Pai e de uma doação plena à humanidade. Por isso, ao
recordar nesse mês de agosto o chamado divino, além de se valorizar as vocações
específicas, como a do ministério ordenado, a da vida religiosa, a da vida
matrimonial, a dos serviços prestados por leigos e leigas, é importante não
esquecer a vocação primordial: ser chamado a ser filho/a no Filho, tornando-se
como ele, homem e mulher em relação estreita de amizade com Deus, com os demais
seres humanos e com toda a criação. A fé cristã, sem ignorar o lugar do sagrado
na existência, deve descobri-lo como lugar de relação. Deus é antes de mais
nada aquele a quem somos chamados a descobrir como Pai amoroso. Por isso, o
mandamento primeiro, o mais importante, é amá-lo de todo o coração, com todas
as forças. Indissociável dele se encontra o mandamento do amor ao próximo,
chegando, à luz da vida de Jesus, que reconcilia tudo e todos, a amar os
inimigos e fazer o bem a quem nos persegue. Oxalá o mês de agosto ajude os/as
cristãos/as a redescobrir isso.
* Geraldo De Mori SJ é professor e
pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Fonte:domtotal.com
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