“Este povo me honra com os
lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc 7,6)
O
evangelho deste domingo (22o Domingo do Tempo Comum) seleciona só alguns
versículos do cap. 7 de Marcos, carta magna da liberdade cristã, no plano da refeição e do amor (relações humanas). Que todos
tenham direito à alimentação e se amem, com todo o coração. Trata-se, pois, de
educar e sanar o coração, não através de mais leis, mas através de mais
liberdade e verdade de amor.
Neste
sentido, o relato de hoje nos situa no centro da dinâmica cristã, no lugar onde
o(a) seguidor(a) de Jesus, muitas vezes centrado(a) na lei, a partir de seu
interior se abre (por impulso da memória de Jesus) à grande liberdade cristã na
refeição e no amor.
De
fato, para muitos, sua relação com Deus se reduz ao cumprimento de algumas
práticas religiosas, à participação em alguns ritos e festas, segundo as normas
e tradições estabelecidas por sua própria religião. O ensinamento de Jesus
liberta de muitas obrigações e orienta ao culto verdadeiro.
É
uma mensagem que nos livra de tantas ataduras e ritualismos, da repetição
mecânica de tradições e normas do passado, e orienta à novidade de um culto
verdadeiro, a partir do coração.
Marcos
ressalta que os fariseus e alguns mestres da lei “se reuniram
em torno de Jesus”. Não
são pessoas interessadas em conhecê-lo. Como fiéis cumpridores da lei, já
haviam percebido o perigo que Jesus representava por suas transgressões em
relação ao sistema religioso. Vieram de Jerusalém, o centro do poder religioso,
para investigar a conduta do Mestre de Nazaré. Tinham reconhecido as coisas
extraordinárias que Ele fazia, e tinham tentado desacreditá-lo frente ao povo,
atribuindo seus poderes ao “chefe dos demônios”. Querem criar ao redor de Jesus
um cerco de suspeitas e rejeição.
Agora,
escribas e fariseus unidos encontram outra transgressão da lei nos discípulos
de Jesus: eles comem sem lavar as mãos. Convivendo com Jesus, eles tinham
assimilado sua liberdade. Na multiplicação dos pães (relato anterior), Jesus
ofereceu pão para a vida de todos, sem exigir purificações prévias, porque a
pureza e a cura vem d’Ele. Mas, para a comissão investigadora vinda de
Jerusalém, comer sem lavar as mãos não era uma falta menor. Estava em jogo todo
um sistema de separação entre o que é puro e o que é impuro.
Há
alimentos puros que todos podem comer, e outros impuros, que são proibidos. E
as pessoas precisam se purificar antes de comer. Assim ensinaram os
antepassados e assim manda a lei. Segundo os encarregados da religião, não se
pode relativizar a autoridade sagrada da tradição.
A
reação de Jesus é muito dura, e põe em evidência que a relação com
Deus não
passa através do uso de alimentos puros ou ritos de purificação, de culto
formal e vazio. Os escribas e fariseus são a encarnação dos destinatários da
denúncia profética de Isaías: “este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”. Os responsáveis da instituição criaram, em nome de
Deus, um sistema de poder, com ritos que os privilegiavam, obrigações que
discriminavam e separavam, e um controle social intolerável. Os pobres não
podiam cumprir com todas as normas, e por isso eram considerados “povo
maldito”.
Uma
consequência muito clara que aparece aqui consiste em que, com muita
frequência, na conduta de muitas pessoas há uma enorme distância entre a
observância dos ritos sagrados, por uma parte, e a fidelidade à honestidade, à
bondade, à justiça... por outra parte.
E
aqui nos deparamos com tantas pessoas que são fielmente observantes das leis e
ritos religiosos, mas, ao mesmo tempo, são pessoas que são profundamente
desumanas na relação com os outros; deixam muito a desejar em sua conduta
ética.
Segundo
os relatos evangélicos, é visível que Jesus não teve enfrentamentos nem com os
romanos, nem com os pecadores, os samaritanos, os estrangeiros, etc... Os
conflitos de Jesus surgiram precisamente com os mais fiéis cumpridores da
religião: sacerdotes, mestres da lei e fariseus.
Jesus
não rejeitou o culto religioso. O que Jesus fez foi deslocar o centro da
religião e esse centro não está nem no templo e nem nas suas cerimônias, nem no
sagrado e nem em seus rituais.
O
centro da experiência religiosa, para Jesus, está em fazer o que fez o mesmo
Deus, que sempre “desce” e se aproxima de todos os seus filhos e filhas. Deus
está presente em cada ser humano, seja quem for, pense como pense, viva como
viva. Só reconhecendo esta realidade surpreendente e vivendo-a, como viveu o
próprio Jesus, estaremos no caminho que nos leva ao centro do verdadeiro culto
a Deus.
Os
líderes religiosos apresentam “mãos limpas” porque não as usam para o
serviço aos outros; são “mãos assépticas” porque não se “contaminam” no contato
com as pessoas. Eles se mostram incapazes de ver as mãos como mediação para uma nova
humanização, reduzindo-as e atrofiando-as devido a seus esquemas religiosos e
morais. Suas mãos carregam censuras, traficam destruição, encarnam a falsidade...
Suas mãos são temidas porque fecham o futuro, excluem e espalham o medo, pesam
porque julgam...
Aqui,
no embate com Jesus, eles não fazem nenhuma referência ao anterior evento da
“multiplicação dos pães” e nada dizem sobre a refeição de Jesus com a multidão;
eles não se preocupam com aqueles que não comem, mas observam a compostura
daqueles que comem. Sua visão míope foge do essencial para permanecer no
periférico. Desviam a atenção para o terreno de seus domínios, uma moral
superficial, descompromissada. Assim, pois, centram sua atenção em alguns dos
discípulos para captar uma irregularidade em sua forma de comer, pois eles
comem com “mãos impuras”.
Jesus
nos coloca a todos diante deste dilema: o que vem em primeiro lugar, os ritos
religiosos ou o compromisso com a vida dos mais vulneráveis e excluídos? O mais
importante é o ritual religioso ou a experiência humana de encontro,
convivência, serviço...?
Para
Jesus, o culto verdadeiro a Deus não passa pelas cerimônias pomposas, centradas
na exterioridade e aparência, mas pelo coração e pela vida. É uma mensagem que
Marcos envia também à sua comunidade.
Jesus
insiste, com uma indicação que quer ser universal: “Escutai todos
e compreendei”. Todas
as coisas são puras. A impureza, o que separa de Deus e dos outros, não vem dos
alimentos que são comidos, daquilo que vem de fora e vai ao estômago.
A
impureza pode sair só de dentro, do centro da pessoa, do coração do ser humano.
Isso impede a relação sadia com Deus, ferindo as relações humanas. O coração do
ser humano é capaz do melhor (compaixão, solidariedade, bondade, serviço,
amor...) mas, quando petrificado e fechado, é capaz do pior (más intenções,
imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, devassidão, inveja, calúnia,
orgulho...). São os chamados “pecados de raiz”, ou seja, endurecimentos, fechamentos e fixações... que
impedem a energia vital, a misericórdia de Deus, fluir livremente. São bloqueios
e empecilhos colocados por nós mesmos e que interceptam a relação com Deus, com
os outros e com as criaturas, portanto, com a plenitude da vida, e cortam
nossas próprias potencialidades de vida.
Quando
falamos de “pecados de raiz” queremos destacar a necessidade de uma conversão radical.
Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: - Deixe-se conduzir pelo Espírito; graças à sua presença, o
caos interior se transformará em cosmos (beleza e harmonia) que se expressará
em compaixão, perdão, tolerância, acolhida...
-
Seus pensamentos são poluídos? Suas palavras são ácidas? Seus gestos são
agressivos? Os entulhos – ódios, julgamentos, inveja, intolerância... se
amontoam em seu interior?
-
Permita que o Espírito transite livremente pelos espaços mais sombrios do seu
eu profundo, realizando uma verdadeira “ecologia interior”.
-
Recolha-se no mais íntimo de si mesmo, mergulhe em seu oceano de mistério e
descubra, lá no mais profundo, o Ser Vivo que fundamenta a sua identidade e seu ser verdadeiro.
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Fonte:centroloyola.org.br
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