São
Paulo escrevendo suas Epístolas, por Valentin de Boulogne (Domínio público)
Paulo
apresenta em sua carta dois elementos importantes: a Lei e a fé. A Lei
enfeitiça. Ela é maldição e idolatria. A fé dá-nos o Espírito de liberdade e a
bênção
Frei Jacir de Freitas Faria*
A Carta aos Gálatas abre-nos
um leque para compreender as dificuldades encontradas por Paulo na sua
catequese nos primórdios do cristianismo com os irmãos conservadores de
Jerusalém e os de hoje.
Escrita por volta do ano 55 E.C., o
seu contexto nos remete ao fato de que não havia mais que duas décadas que
Jesus tinha morrido, ou melhor, crucificado injustamente pelas lideranças
judaicas com o apoio dos romanos.
As comunidades cristãs ainda não
tinham uma estrutura interna capaz de se manterem unidas num único propósito.
Havia disputas entre as lideranças sobre a missão herdada do mestre Jesus. O
Evangelho começava a sair das trincheiras judaicas. Na Palestina, Sinagoga e
Igreja ainda estavam juntas. Judeus e cristãos frequentavam a sinagoga. A
ruptura definitiva viria mais tarde, no 66 E.C.
Surge, então, no cenário da fé
cristã uma liderança que, outrora, havia sido uma perseguidora dos cristãos.
Seu nome era Saulo de Tarso, que se fez Paulo, após sua adesão às propostas ao
Reino de Deus pregado por Jesus. Paulo reconhece Jesus como o Messias que o seu
povo esperava. Parece ironia do destino? Sim. Paulo era um fariseu de linha
dura na observância da Lei judaica, um perseguidor de cristãos. Ele mesmo
escreveu que 'devastava a Igreja de Deus' (Gl 1,13) na carta dirigida aos
gentios, os não judeus convertidos ao cristianismo, na região da Galácia,
região da Anatólia central, atual Turquia.
Contexto da
missão de Paulo na Galácia
Na região da Galácia
havia pequenos povoados. Seus habitantes eram oriundos da Gália, região que
inclui parte da França. Não havia ali judeus nem sinagogas. Os gálatas eram
amantes da liberdade, não se deixavam subjugar com facilidade, mas aceitavam
novidades. Em relação à religião, eles cultuavam os astros, os quais, para
eles, regiam o mundo e as pessoas. Acreditavam em horóscopo, magias e feitiços.
Quando Paulo esteve na
região para se tratar de uma doença nos olhos, ele foi bem acolhido, como ele
mesmo recorda: "Se vos fosse possível, teríeis arrancado os olhos para dá-los
a mim" (Gl 4,15). Respeitando as tradições religiosas locais, Paulo falou
para eles de Jesus como Messias, mas não da religião judaica e suas
observâncias previstas na lei judaica, como a circuncisão, a observância do
Sábado, das festas e dos preceitos referentes às comidas impuras.
O grande segredo do
missionário Paulo foi o de respeitar o valor da liberdade que essa comunidade
atribuía nos relacionamentos e nos costumes, por isso, escreveu: "é para a
liberdade que Cristo nos libertou" (Gl 5,1). O Evangelho de Paulo é o da
liberdade no Espírito. Paulo não chegou na Galácia para construir uma Igreja,
uma grande catedral, mas para fundar uma comunidade de fé, como tantas outras
que estavam sendo criadas na região. Um exemplo de ação missionária para os
nossos dias.
A problemática
criada pelos judeus na Galácia
A motivação da Carta
aos Gálatas surgiu quando Paulo percebeu o estrago que seus conterrâneos tinham
feito na região. Dizendo serem representantes dos apóstolos de Jerusalém, uns
'falsos irmãos' judeus tentaram persuadir a comunidade de que era necessário
fazer a circuncisão para estar conforme o judaísmo e, somente depois, tornar-se
cristão. Por conseguinte, ser salvo. Eles diziam que Paulo estava equivocado e
que era preciso seguir as orientações dos apóstolos de Jerusalém. Muitos
estavam aderindo às propostas dessas lideranças.
Paulo, sabendo da
polêmica provocada pelos judeus tradicionalistas, ficou irritado. Ele se
dirigiu aos gálatas, chamando-os de insensatos (Gl 3,1). Eles não teriam o
direito de dar ouvido a essas falsas orientações. "O que eles querem é
separar-vos de mim para que vós os cortejais a eles" (Gl 4,18), escreveu.
E Paulo foi ainda mais radical, quando propôs que, ao invés de circuncidar,
como pedia aqueles judeus, que eles cortassem tudo de uma vez, isto é, que se
castrem (Gl 5,12). Essa prática ritual, usada ironicamente por Paulo, era comum
no culto à deusa Cibele.
Indignação e raiva
motivaram Paulo na elaboração de seus argumentos no decorrer da Carta
aos Gálatas. Paulo deixa claro que Cristo nos deu a liberdade e nos
libertou da escravidão que esses "falsos irmãos" estavam querendo
impor-lhes (Gl 5,1-12). Em Jesus nos tornamos filhos de Deus e somos
confirmados no Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai! (Gl 4,6).
Estrutura da
carta
Para expor a sua
argumentação, Paulo estrutura a Carta aos Gálatas da seguinte
forma:
1,1-5: Prólogo
1,6-10: Evangelho de
Jesus Cristo
1,11-5,15: Cinco
argumentos em favor do Evangelho
5,16-6,10: Sentido da
liberdade que deriva do Evangelho
6,11-18: Epílogo
No prólogo, Paulo
apresenta os temas que serão tratados na carta. Nos versículos de seis a dez,
admoesta aos gálatas sobre o abandono do Evangelho de Jesus Cristo que ele
havia pregado para eles. Os cinco argumentos em favor do Evangelho são: ele vem
de Jesus, foi confirmado pelos apóstolos de Jerusalém, anunciado por Paulo,
vivenciado pela comunidade de Gálatas e sustentado pela Palavra de Deus.
Na sequência
(5,16-6,10), Paulo demonstra como a adesão ao Evangelho proporciona a liberdade
total e não a escravidão da Lei judaica. O epílogo conclui a carta retomando
pontos importantes de sua admoestação, reforçando a não importância da
circuncisão e da escravidão que ela, sendo a Lei, pode causar. Melhor é
gloriar-se na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, conclui. Para os da comunidade
que estavam com ele, Paulo deseja de paz e a misericórdia. Por fim, pede para
não ser incomodado e deseja a graça de Jesus.
Paulo apresenta em sua
carta dois elementos importantes: a Lei e a fé. A Lei enfeitiça. Ela é maldição
e idolatria. A fé dá-nos o Espírito de liberdade e a bênção. Os gálatas
deveriam escolher entre a Lei e a fé. A fé torna-nos filhos de Abraão, faz-nos
viver como justos, faz-nos um só em Cristo Jesus: judeus e gregos, escravos e
livres, homem e mulher, um só povo em Jesus Cristo e filhos de Deus.
Em Jesus todos se
tornam Filhos de Deus. Não há outra escolha para o Gálatas. Eles, que sabem o
que é a liberdade, não podem acatar influências malévolas de falsos irmãos que
querem escravizá-los com a Lei judaica. Nada de abandonar o Evangelho de Jesus
Cristo que ele lhes havia anunciado.
Conclusão: os
conservadores de hoje
A prática dos judeus
que chegaram na Galácia difamando Paulo continua viva no meio de nós. Esse tipo
de prática, motivada pelo ciúme e tradicionalismo religioso, está revestido de
uma fé moralizante, que quer salvar estruturas e não pessoas. Eles têm nome.
São prelados do alto escalão do Vaticano a leigos(as) conservadores de nossas
igrejas domésticas, fortalecidos por ações pastorais fora do tempo de bispos e
padres. São políticos conservadores e conservadores católicos de entidades que
se dizem católicas, como o Centro Dom Bosco, do Rio de Janeiro, que tem como
lema: "Rezar, estudar e defender a fé".
Assim como aqueles
judeus que chegaram na Galácia, esses tradicionalistas perderam a essência do
Evangelho. Andam desacreditando o papa Francisco e os acreditam numa Igreja
aberta aos desafios de nosso tempo, que nos liberta de tantas amarras de uma fé
atrelada às tradições conservadoras. Os inimigos deles são todos da Libertação.
Esses tradicionalistas
de nosso tempo agem inspirados na Igreja da Cristandade, aquela que mandou para
a fogueira os que defendiam a liberdade do Espírito do Evangelho e se opunham
ao tradicionalismo de uma Igreja alicerçada no poder.
A Carta aos
Gálatas convoca-nos a ficar atentos com os tradicionalistas de hoje.
Eles se dizem querer salvar a Igreja e seus valores, mas pecam pela visão
equivocada do Evangelho. Graças a Deus que o papa Francisco, assim como Paulo,
continua firme na fé e no Espírito do Evangelho.
*Doutor em Teologia Bíblica pela
Faje (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto
Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação
Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez
livros e coautor de quinze. Último livro: O Medo do Inferno e arte de bem
morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora
da Boa Morte (Vozes, 2019). Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos.
https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
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