“Ephathá!
Imediatamente seus ouvidos se abriram e sua língua se soltou...” (Mc
7,35)
Diz um
proverbio chinês que “quando os olhos são liberados, começa-se a ver;
quando os ouvidos são liberados, começa-se a ouvir; quando a boca é liberada,
começa-se a saborear, e quando a mente é liberada, alcança-se a sabedoria e a
felicidade”.
Para nos
livrar da auto-referência é preciso “cristificar” nossos sentidos,
tornando-os oblativos e expansivos. Talvez, a pior enfermidade que padecemos é
a atrofia e petrificação dos sentidos; com isso, perdemos a capacidade de
assombro e de agradecimento, a capacidade de abertura ao outro, aos outros e ao
Outro.
Segundo o
livro do Gênesis, o estado original dos sentidos e da mente é a
contemplação e a admiração, e não o instinto possessivo ou a suspeita; através
deles transitamos pelo mundo numa atitude receptiva.
Assim,
“pensar” a realidade é acolhê-la com gratidão e veneração. Com os sentidos
oblativos, a inteligência é chamada a “sentir” o mundo como Tabernáculo de uma
Presença, que tudo dignifica e torna sagrado.
A
filosofia antiga dizia: “Não há nada no entendimento que antes não tenha
estado nos sentidos”.
Todo o
corpo humano é expressão: gesto, atitude, palavra...; tudo isto revela
interioridade, sentimento, espiritualidade; e os sentidos do outro,
se estão atentos, podem captar o que foi expresso.
Cessado o
pensamento nós nos transformamos num ser só de sentidos, do jeito
mesmo como nascemos.
Nós somos
olho, ouvido, nariz, boca, pele. Olhamos, escutamos, saboreamos, cheiramos,
tocamos... Só assim entramos em interação com a realidade e com os outros. Os
sentidos nos humanizam.
O
evangelho deste domingo condensa vários aspectos que se oferecem a nós como luz
para desvelar o lugar e a importância dos nossos sentidos. Neste relato
encontramos Jesus peregrino, fora de seu país, atravessando terra estrangeira,
um espaço habitado por “pagãos”, por aqueles que não professam a fé no Deus de
Israel. Jesus, com todos os seus sentidos ativos, quebra distâncias e se faz
próximo do diferente, daquele que é rejeitado por não ter as mesmas ideias, a
mesma religião, a mesma cultura...
O relato
ajuda a nos fixar na corporeidade de Jesus, pois nos fala de suas
mãos, de seus dedos, saliva, olhos, respiração..., todo o seu ser a serviço do
bem. Jesus mobiliza todos os seus sentidos para “destravar” os sentidos
bloqueados do enfermo que é levado até Ele.
Jesus se
revela como presença inspiradora e nos apresenta uma maneira original de viver
o encontro, a acolhida, o diálogo e a cura. Ele rompe as fronteiras e os
pré-juízos, se aproxima e permite que os outros se aproximem dele, oferecendo,
na relação, o melhor de si mesmo e despertando o melhor que há na outra
pessoa. Assim, para uma relação sadia e compassiva é preciso mobilizar todos os
sentidos corporais.
Jesus,
com seus sentidos abertos e acolhedores, destrava os sentidos do
pobre homem excluído e o capacita a integrar-se na convivência social; com os
sentidos abertos, agora ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma
vez libertado da atrofia dos sentidos, o homem se emancipa, recupera
sua autonomia e pode manifestar-se sem bloqueios; nada mais o limita.
No
encontro com o enfermo que lhe é apresentado, Jesus começa por usar uma
linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através
dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade.
Jesus, no
início da cura, “o conduz à parte, longe da multidão”; uma ação
personalizadora, um afastamento da multidão, para longe da massificação.
E lá, na
intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas
dores.
-
“Colocou os dedos nos seus ouvidos”: literalmente, “pôs o dedo na ferida”.
A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
- “Com a
saliva tocou a língua dele”: força terapêutica da saliva.
-
“Olhando para o céu..”: Jesus olha para o alto, em direção ao Pai. Com
o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo
ao Pai, origem de toda vida.
- “Jesus
suspirou”: com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. dia
da Criação; recorda como Deus “fez tudo bem” no início. Traz à memória o sopro do
Espírito, que transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou
seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e pela
língua, para ser transformado em palavras.
- “E
disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”: palavra dirigida ao
coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava
teu interior!”
Depois de
tantos gestos não-verbais e primitivos, vem a palavra. E o surdo-mudo
desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e
proclamam que Ele é o único, com todos os órgãos e sentidos do seu corpo.
A
sociedade na qual estamos inseridos requer de todos nós uma nova
sensibilidade para facilitar a convivência, a transformação social e
acolher a nova visão da existência humana. No entanto, a convivência social se
revela cada vez mais conflituosa; uma das grandes dificuldades é a ausência de
saber escutar, olhar, sentir...
Vivemos
tempos de reclusão, petrificação, ódios e intolerâncias... que são o contrário
do “ephatá-abre-te”.
É
preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar
insubstituível na experiência da relação com os outros e na expressão de nossa
fé. E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através
do confronto com a “sensibilidade de Jesus”.
Nesse
sentido, a conversão evangélica precisa chegar a alcançar a sensibilidade para
ser efetiva. Os sentidos se fazem “espirituais”, isto é,
tornam-se sentidos transfigurados, habitados, animados pelo Espírito de Deus
porque o ser humano é o “templo do Espírito” (S. Paulo).
Assim,
uma sensibilidade cristificada revela-se como uma graça que nos
permite viver o seguimento de Jesus de um modo sempre original e aberto.
O agir
cristão depende da sensibilidade e enquanto esta não for evangelizada
não podemos ter certeza de reagir evangelicamente na vida.
Escutar,
sentir, perceber as próprias sensações físicas, as emoções primárias, as
reações psíquicas...: o corpo é criativo nas suas expressões e na arte da
comunicação. A corporalidade, tanto pode ser escutada como sentida. Tendo
aprendido a auto-escutar, pode-se olhar, escutar ou sentir as reações vocais,
corporais e sentimentais do outro que padece, que sorri, que precisa falar.
Enfim,
somos convidados a nos identificar com Jesus Cristo ativando, assídua e
amorosamente, os olhos e ouvidos, o tato, paladar e olfato, com
a esperança de que fiquem tão banhados e afetados pela sensibilidade d’Ele que,
quando mais tarde entrarem em contato com a vida real, possam reagir diante
dela com uma sensibilidade nova, diferente, transformada, convertida.
Só assim nossa presença será mais evangélica.
Texto
bíblico: Mc 7,31-37
Na
oração: O surdo-mudo precisava abrir os ouvidos e soltar a língua, mas
todos nós precisamos abrir alguma dimensão de nossa pessoa que está travada, ou
talvez alguma capacidade adormecida ou bloqueada. É preciso transitar com Jesus
pelos “territórios pagãos” da nossa própria interioridade, onde dimensões da
vida estão travadas, palavras estão silenciadas, dinamismos estão atrofiados...
- Deixe
ressoar em seu coração: “Ephathá! Abre-te!” - “Abre-te” a outros modos de
pensar, a outras visões e culturas, viver aberto(a) à história e à desafiante
realidade.
- O que é
preciso “desbloquear” em seu interior? Capacidades adormecidas? (amor, ternura,
alegria, generosidade, solidariedade, liberdade...); defesas protetoras que se
converteram em armadura oxidada? (medos, retraimento, imagem idealizada...);
“manias” nas quais se instala, costumes e rotinas que o(a) mantém fechado(a) em
uma jaula de um falso conforto...?
- O que parece
claro é que a abertura a espaços interiores vem sempre acompanhada da abertura
aos outros e a toda a realidade. Esse parece ser o caminho que conduz à
descoberta de que todos somos uno com a Fonte.
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Fonte:centroloyola.org.br
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