sábado, 30 de outubro de 2021

EUA MONITORARAM PAULO EVARISTO ARNS LOGO QUE ELE ASSUMIU ARQUIDIOCESE DE SP




Dom Paulo Evaristo Arns, cujo centenário de nascimento em setembro foi objeto de homenagens póstumas, morreu em São Paulo aos 95 anos, no ano de 2015.Imagem: Yasmin Ayumi


Eduardo Reina

Colaboração para o UOL, em São Paulo

30/10/2021 04h01

Três agentes do Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo) prenderam a assistente social Yara Spadini no momento em que ela entrava na sacristia da paróquia São José, no bairro de Americanópolis, na zona sul paulistana. Era o dia 27 de janeiro de 1971.

Ao ver a cena do outro lado da rua, o padre italiano Giulio Vicini se aproximou, foi revistado e também preso. Levados à sede do Deops, no centro de São Paulo, foram torturados por horas seguidas.

Ao tomar conhecimento da situação, dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo havia menos de três meses, começou a batalhar pela soltura de Yara e Giulio.
25.out.1985: Homenagem a Paulo Evaristo Arns no ato solene de entrega do 7º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos HumanosImagem: Vidal Cavalcante/Folhapress

Documentos secretos dos Estados Unidos mostram como o religioso, célebre pela defesa dos direitos humanos e por enfrentar a ditadura militar, foi monitorado pelos órgãos de repressão e também por diplomatas estadunidenses, a partir do momento em que ele assumiu a arquidiocese de São Paulo, em novembro de 1970.

Dom Paulo Evaristo Arns, cujo centenário de nascimento em setembro foi objeto de homenagens póstumas, morreu em São Paulo aos 95 anos, no ano de 2015.

Personagens dessa narrativa, Yara e Giulio moram hoje em São Paulo, aposentados, e ainda atuam em atividades de defesa dos direitos humanos.
Motivos da prisão

Mas por que Yara e Giulio foram presos?

"Inicialmente, Yara foi detida para averiguações pedidas pelo comando do 2º Exército", afirmou Giulio Vicini.

Os agentes da repressão procuravam alguém de nome Yara, que estaria ligada a prisões de militantes de esquerda na cidade de Mauá, na Grande São Paulo.

"O nome Yara também constava da agenda de uma religiosa detida em Belo Horizonte, na mesma época."

Já o acaso colaborou para a prisão do padre. Ao abordar os agentes, ele trazia na bolsa a tiracolo um estêncil com texto datilografado sobre a morte do metalúrgico e militante da AP (Ação Popular) Raimundo Eduardo da Silva.


Silva morreu na prisão sob tortura em janeiro de 1971, quando tinha 22 anos de idade. O governo não deu explicações sobre o caso.

A intenção de Giulio Vicini era encaminhar a denúncia para os bispos reunidos em um congresso no mosteiro de Itaici, interior paulista.

"Os investigadores encontraram um estêncil, ainda não mimeografado, com relato de prisões de operários que trabalhavam na cidade paulista de Mauá, um dos quais morrera depois de torturado", registra Cátia Regina Rodrigues em sua dissertação de mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo) em 2008, consultada pela reportagem.

"Em seguida fomos levados ao Deops, numa perua Veraneio C-14, muito utilizada pelos órgãos de repressão", conta Vicini.
Dom Paulo Evaristo Arns e Paulo Freire no seminário "O Simbólico e o Diabólico na Política", realizado no Tuca, o teatro da PUC, em São PauloImagem: autor desconhecido

Sessão de tortura

Giulio e Yara foram submetidos a torturas durante toda a madrugada do dia 28 de janeiro, uma quarta-feira. Por volta de 6h do dia seguinte, foram colocados em celas. O padre ficou na cela 5, e Yara, na 3.

"Foi quando encontramos as pessoas de Mauá, na maioria jovens, militantes da AP, que confirmaram as denúncias da morte do operário, como estavam descritas no relato que Giulio trazia consigo na ocasião da prisão", conta a assistente social.

Yara foi torturada na cadeira do dragão, equipamento em que a pessoa tomava choques elétricos atada a vários fios. Já Vicini apanhou muito e sofreu vários tipos de tortura durante dias.

Os dois foram transferidos ao Presídio Tiradentes, na capital paulista. Vicini foi levado à mesma cela em que estavam detidos frades dominicanos.

Yara foi encaminhada à chamada "Torre", onde havia aproximadamente trinta presas políticas — entre elas, a ex-presidente da República Dilma Rousseff.

Intervenção de dom Paulo Evaristo Arns

Já no presídio foram visitados por dom Paulo Evaristo Arns, que pediu que fizessem relato por escrito das torturas sofridas. Com base nesses depoimentos, ele elaborou um texto de denúncia e ordenou que fossem fixadas cópias nas portas de todas as paróquias e oratórios da Arquidiocese de São Paulo.

Em 4 de fevereiro de 1971, nota assinada pelo religioso denunciou as torturas e proclamou o direito de defesa de todo cidadão.
Paulo Evaristo Arns, em foto de abril de 1970Imagem: Agência Estado

Por aqueles dias, o cônsul-geral dos EUA em São Paulo, Robert Corrigan, enviou um telegrama ao Departamento de Estado dos EUA, em Washington. No documento, ele afirma que o arcebispo confrontava o general-presidente Emílio Garrastazu Médici e sugere a deportação do padre Giulio Vicini.

A Justiça Militar aceitou a denúncia feita contra Vicini e Yara menos de um mês depois de suas prisões. Em 14 de fevereiro de 1971, o procurador da Justiça Militar Durval Ayrton de Moura Araújo, da 2ª Auditoria de Guerra de São Paulo, acusou o padre porque ele "datilografou estêncil contendo clara propaganda subversiva".

Já contra Yara alegou haver "veementes indícios de que participava das mesmas atividades criminosas, porque possuía consigo os panfletos intitulados 'Luta Metalúrgica' e porque ocultou na sua bolsa o referido estêncil". Esta última alegação refere-se ao fato de Yara ter guardado o estêncil em sua bolsa, quando estava a caminho do Deops, na perua Veraneio sentada ao lado de um dos policiais.

No documento dos EUA, Robert Corrigan fala que a acusação da Justiça Militar foi feita com base "em supostas violações da lei nacional de segurança [sic]" -o nome correto é Lei de Segurança Nacional.

O diplomata relata que o padre foi acusado de preparar e ter sido flagrado com estêncil "para panfleto subversivo a ser distribuído entre trabalhadores com o objetivo de virá-los contra autoridades devidamente constituídas".

A estratégia do arcebispo paulistano, que levou ao conhecimento público e internacional as prisões arbitrárias de Vicini e Yara, foi "eficaz tanto para a proteção da integridade física dos presos, que não teriam mais sido submetidos a subsequentes sessões de tortura, quanto para dar agilidade ao andamento de seus processos da Justiça Militar", esclarece Cátia Regina Rodrigues em texto de mestrado de 2008 na USP.
Dom Paulo Evaristo Arns, cujo nascimento completou cem anos em setembro de 2021Imagem: Agência Senado
Absolvição de Yara e Vicini

O trâmite judicial cumpriu os prazos legais e foi encerrado em dois meses. Yara permaneceu detida no Presídio Tiradentes nesse período. Foi absolvida por absoluta falta de provas em 31 de março de 1971, segundo o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh.

Vicini foi condenado em primeira instância a seis meses de detenção, com redução de um terço da pena, permanecendo no presídio por mais dois meses. Depois, foi absolvido pelo próprio STM (Superior Tribunal Militar), por unanimidade, em 30 de agosto de 1971, quando voltou a assumir suas funções de vigário na paróquia São José.

Contudo, a condenação no processo em 1971 e a sugestão dada pelo cônsul-geral dos EUA, Robert Corrigan, rendeu a Giulio Vicini um processo de expulsão do Brasil. A ação só foi instaurada em 1973, quando ele já estava casado com Yara Spadini.

Um ano antes, Vicini havia deixado o Pime (Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras), cuja sede era na Itália e com representação no Brasil, em meio ao momento conturbado das prisões e tortura. Yara e ele se casaram e tiveram um filho, razão pela qual o processo de expulsão não pôde ter tido continuidade.

Giulio Vicini pediu ao governo brasileiro sua naturalização, em 1994. O pedido foi recusado inicialmente, sob alegação de ter sido condenado em processo político no ano de 1971. Um recurso judicial reverteu a situação, pois ficou comprovado que ele havia sido absolvido em segunda instância. Obteve a naturalização em janeiro de 1995.

Após deixar a prisão, Yara retomou seus trabalhos na arquidiocese católica na região sul paulistana. Em agosto de 1973, assumiu o trabalho de assistente social na Fundação IBGE, de onde foi demitida por ter sido presa política.

UOL

Um comentário:

  1. Lamentável tragédia a ditadura militar. Ainda tem pessoas que tem saudades deste tempo de tortura e ainda se disfarça de cristão. Que mundo e esse?

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