FURTO FAMÉLICO: 'EU SÓ ESTAVA COM MUITA FOME'
Em um
país assolado pela fome, é dever dos cristãos levantar-se contra os
responsáveis (Valmir Fernandes/Coletivo Marmitas da Terra/Fotos Públicas)
Saciar
a fome deveria ser o projeto central da sociedade, da economia e dos poderes
políticos
Élio
Gasda*
A dignidade humana
implica na satisfação de necessidades básicas como a alimentação, moradia,
saúde, trabalho, educação, cultura e lazer. Direitos fundamentais garantidos na
Constituição Brasileira de 1988. Tais direitos objetivam construir uma
sociedade livre, justa e fraterna. Erradicar a pobreza e a fome é dever do
Estado.
A fome é a uma
tortura. Leva ao desespero. "Quem pode remediar a fome e por avareza
esconde o remédio, com razão pode ser condenado como homicida" (São
Basílio, Homilia em tempos de fome).
A fome é uma ofensa à
dignidade humana. A falta de alimentos no organismo, por tempo prolongado, faz
o estômago doer, causa mal-estar, fraqueza e morte. O Brasil tem mais de 20
milhões de famintos e 40% da população vive em insegurança alimentar. "Falar
que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não se come
bem. Agora, passar fome, não" (Jair Bolsonaro). Bolsonaro devolveu o país
ao Mapa da Fome.
Enquanto o povo revira
caminhões de lixo em busca de comida, bancos privados aumentam em 53% os lucros
(R$ 62 bilhões só no primeiro semestre). Não falta produção de alimentos, mas
comida virou mercadoria. O agronegócio, cresceu 24,31% em 2020 (Centro de
Estudos Avançados em Economia Aplicada). O mesmo agronegócio que provoca
queimadas, destrói florestas contamina as águas e o meio ambiente como
agrotóxicos. Sua única preocupação é lucro. São grandes responsáveis pela fome
do povo.
"Todo aquele que
em seus negócios se der a práticas usurárias e mercantis que provocam a fome e
a morte de seus irmãos comete indiretamente um homicídio" (Catecismo da
Igreja Católica, 2269). Causar a fome é um crime!
A fome dói no corpo e
na alma. A realidade vivida pelos mais pobres é tratada com crueldade pela
justiça. São cada vez mais comuns os furtos de alimentos em supermercados. São
furtos famélicos, aqueles cometidos pela necessidade de alimentar a si ou à
família. Como aquela mulher de 41 anos, mãe de cinco filhos, acusada de furtar
uma Coca-Cola, dois pacotes de macarrão instantâneo e suco em pó, totalizando
menos de R$ 22. Teve prisão decretada. Uma
juíza e três desembargadores entenderam que a mulher representava um perigo
para a sociedade.
Para Santo Tomás de
Aquino, maior teólogo da Igreja, casos de extrema necessidade humana eliminam
integralmente o delito de furto. As coisas indispensáveis à vida humana,
sobremodo o alimento, perdem a qualidade de particulares e se tornam comuns a
todos. Não se pode considerar furto quando algo é retirado de seu titular para
atendimento de uma necessidade vital básica. Os casos de fome e nudez não podem
ser permitidos pelo Estado e pela sociedade, porque os alimentos e as vestes
são direito naturais (Suma Teológica, II-II q. 66 a. 6-7).
Furto famélico não é
crime. O artigo 24 do Código Penal considera "em estado de necessidade
quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua
vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo
sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se". O Supremo
Tribunal Federal adota, além do furto famélico, o "princípio da
insignificância", "bagatela" ou "estado de
necessidade" furtar alimento para saciar a fome.
Proteger os ricos e
condenar os pobres. Essa tem sido a prática de muitos juízes. Com salários
milionários e privilégios escandalosos, os integrantes do poder judiciário
fazem parte da alta sociedade. Vivem em um mundo paralelo, não sabem o que é
desemprego, pobreza, fome. O dinheiro roubado do povo, da educação, da saúde,
não tem importância. Penalizam o furto de alimentos e absolvem desvio de
recursos públicos. De um lado a ostentação dos ricaços; do outro, o desespero
dos famintos.
Para quem tem fome, o
amor de Deus se traduz num pedaço de pão. O pão é elemento central no anúncio
do Evangelho. Saciar a fome deveria ser o projeto central da sociedade, da
economia e dos poderes políticos.
Prender uma mãe pelo
furto de miojo para matar a fome! A que ponto chegou a justiça brasileira!
Vergonha! Que país nos tornamos! O principal responsável pela fome de milhões e
pela morte de mais de 600 mil pessoas continua na presidência com sua política
genocida.
A fome se alastrou
pelo Brasil. Mulheres, homens e crianças com rosto humilhado, flagelado, tal
qual Jesus crucificado. "Tive fome" (Mt 25, 35) ... e vocês me
condenaram.
Que ninguém se cale
diante da fome! Que ninguém se omita diante de tanta barbárie! Em um país
assolado pela fome, é dever dos cristãos levantar-se contra os responsáveis.
"Que juízo mais
severo te espera, ó rico. O povo sente fome e tu fechas teus celeiros; o povo
implora e tu exibes tuas joias" (Santo Ambrósio, Livro de Naboth, 56).
*Élio Gasda é doutor em Teologia,
professor e pesquisador na Faje. Autor de: 'Trabalho e capitalismo global:
atualidade da Doutrina social da Igreja' (Paulinas, 2001); 'Cristianismo e
economia' (Paulinas, 2016)
Fonte: domtotal.com
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