O mês de setembro foi marcado pela
morte dos teólogos Pablo Richard, Bernard Sesboué e Eberhard Jüngel. Oferecemos
aqui uma breve biografia como memória agradecida por suas contribuições para a
inteligência da fé.
Geraldo De
Mori, SJ*
"Façamos o elogio
dos homens ilustres, que são nossos antepassados" (Ecl 44,1).
Os dias 20, 22 e 28 de setembro de 2021 foram respectivamente
marcados pelas mortes de três teólogos: o chileno Pablo Richard, o francês
Bernard Sesboué e o alemão Eberhard Jüngel. Uma imagem interessante com a qual
os três, provavelmente, se identificariam, é a do anão sobre ombros do gigante,
caso fossem perguntados sobre o lugar de cada um na paisagem teológica do
século 20 e início do século 21. Certamente nenhum deles se consideraria um
"gigante" da teologia como foram Karl Rahner, Yves Congar, Urs von
Balthasar, Henri de Lubac, Karl Barth, Rudolf Bultmann, Paul Tillich, Gerhard
Ebeling. No entanto, sem exageros, pode-se dizer que, embora pudessem se identificar
com os "anões" da teologia dos últimos 60 anos, eles se tornaram
"mestres a pensar", abrindo novos caminhos para a fé. Sem pretender
oferecer aqui uma biografia exaustiva dessas três grandes vozes teológicas dos
séculos 20 e 21, o presente texto propõe uma breve memória agradecida por suas
contribuições para a inteligência da fé.
1. Pablo Richard
Nascido em 1939, no Chile, Pablo Richard, após a formação
teológica de base na Pontifícia Universidade Católica do Chile, fez estudos de
Bíblia no Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutorou-se em sociologia na
Sorbonne (Paris). Fortemente implicado no movimento chileno "Cristãos para
o socialismo", após o golpe militar de Augusto Pinochet, teve que
abandonar seu país, fixando residência de San José (Costa Rica), onde, desde
então, passou a atuar junto ao Departamento de Estudos Ecumênicos (DEI) e na
Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA). Foi um
dos atores importantes no processo de elaboração da reflexão teológica latino-americana.
Sua vinculação a um pensamento crítico e engajado o fez,
inicialmente, centrar sua atenção na busca de uma racionalidade não teológica
como mediação para que a teologia fosse historicamente significativa e
relevante. Ele se tornou então crítico da racionalidade moderna privilegiada
pelo Concílio Vaticano II, pois a considerava legitimadora das contradições
sociais. Para ele, o ponto de partida de uma teologia e de um cristianismo com
significado histórico é a racionalidade da prática política, a racionalidade
história da práxis social, cujas expressões concretas estão no socialismo. A
teologia mediada por esse tipo de racionalidade aceita a primazia do ser humano
concreto sobre o abstrato, da existência sobre a consciência, da história sobre
os valores eternos e transcendentes. Essa teologia teria então as seguintes
características: 1. Seria politicamente comprometida, não se contentando em
interpretar o mundo, mas em transformá-lo; 2. Seria uma teologia não
institucional, pois não nasceria nem se desenvolveria a partir de uma
preocupação em saber qual é o "específico do cristianismo".
Em seus escritos posteriores, Pablo Richard insiste na dupla
exigência da prática da libertação: a exigência política e a exigência
espiritual. O autor tem consciência de que a prática da libertação não conduz
necessariamente e de modo mecânico à experiência de Deus, mas mostra que essa
prática é a condição de possibilidade da acolhida do dom e da graça do encontro
com Deus. A teologia da libertação, diz ele, nasce como teologia espiritual na
prática da libertação, se desenvolve como teologia orgânica nas comunidades de
base e amadurece como teologia universal e libertadora a partir da experiência
de Deus na experiência do pobre. Sua originalidade não se encontra nas opções
políticas ou nas mediações sociopolíticas que utiliza, mas na capacidade que
ela tem de descobrir e explicar a experiência de Deus vivida pelo pobre.
A teologia de Pablo Richard é crítica da teologia dominante.
Segundo ele, essa teologia possui uma exegese, uma vivência eclesial e uma
compreensão da salvação idealista, abstrata, ideologizada, alienante e
legitimadora de uma prática de opressão, com pouco enraizamento numa vivência
comunitária da fé, preocupada com a lei e o dogma. Tal perspectiva não se encontra
apenas no "Norte global", mas também no seio da própria Igreja e
teologia latino-americanas. A "Igreja popular", contraposta à Igreja
de cristandade, opõe-se a esse modelo de cristianismo, que legitima o sistema
capitalista e as formas de governo ligadas às classes dominantes. Sem se
identificar com os movimentos populares, ela estimula o processo de
conscientização, de informação, de comunicação, de formação e de organização do
meio popular, incutindo nele uma ética de resistência, de luta pela afirmação
de uma esperança contra toda esperança. Do ponto de vista político, mais que
legitimar qualquer poder, mesmo o popular, a Igreja popular exerce uma função
de consciência crítica, não se acomodando a nenhum poder.
2. Bernard Sesboué
Nasceu em 1929, na França. Após ter estudado Letras Clássicas na
Sorbonne, em 1948 ingressou na Companhia de Jesus. Após os estudos básicos e a
ordenação (1960), fez sua tese de doutorado em Roma, sobre Basílio de Cesareia,
o que o habilitou para o ensino da patrística e da teologia sistemática,
inicialmente na Faculdade Jesuíta de Fourvière, em Lyon, e, a partir de 1974,
no Centre Sèvres, em Paris. Membro da Comissão Teológica Internacional,
participou, entre 1967-2005, do Grupo de Dombes, dedicado ao diálogo ecumênico,
tendo sido consultor do Secretariado para a Unidade dos Cristãos.
Se a preocupação de Pablo Richard foi a de pensar a práxis
evangélica como práxis de libertação das maiorias empobrecidas da América
Latina, a de Bernard Sesboué foi a de tornar o Evangelho compreensível e
significante para uma sociedade secularizada, como a francesa, para a qual os
textos, os símbolos e os ritos cristãos já não mais interessavam nem
interpelavam. O teólogo jesuíta uniu, à qualidade pedagógica da clareza e da
sistematicidade de sua reflexão, a capacidade de abordar, enquanto escritor, os
grandes temas da dogmática e da existência cristã, dos mais simples aos mais
complexos. Dentre os temas abordados por ele, destacam-se os da cristologia,
com obras importantes sobre a soteriologia, a cristologia fundamental, as
contribuições de alguns autores da patrística, a renovação dos estudos
cristológicos do período posterior ao Concílio Vaticano II. Participou ainda da
organização de uma "História dos Dogmas", na qual também escreveu
textos importantes. Sua preocupação pedagógica o levou a elaborar vários textos
sobre temas "espinhosos", como o do ecumenismo, o da mediação da
Igreja para a salvação, o da infalibilidade, o das Instruções romanas sobre os
leigos, de 1997 e 1998. Preocupava-se em apresentar de forma direta e clara os
grandes temas da doutrina cristã, produzindo textos importantes sobre o Credo.
Grande conhecedor de teólogos de referência do século 20, dedicou a alguns
deles algumas de suas obras, como é o caso de Yves de Montcheil e Karl Rahner.
Possuidor de uma erudição invejável, colocou-a, com simplicidade
e sabedoria, ao serviço da inteligência da fé, transformando os conhecimentos
que detinha em palavra interpelante a quem o escutava ou lia suas obras.
Contribuiu dessa maneira para tornar a tradição da qual era detentor em uma
experiência viva de sentido dada pela fé.
3. Eberhard Jüngel
Nasceu em 1934, em Magdeburg, cidade que, após a segunda guerra
mundial, passou a pertencer à Alemanha Oriental. De família não religiosa,
descobriu a Igreja como lugar no qual "podia falar a verdade sem ser
perseguido". Estudou teologia em Berlim Oriental, interessando-se,
sobretudo, pelos escritos de Ernst Fuchs e Heinrich Vogel, que influenciaram
seu pensamento durante toda a vida. Concluiu seus estudos em Zurich, Suíça,
junto a Gerhard Ebeling e Karl Barth, grandes teólogos protestantes do século
20. Sua tese foi sobre as origens da cristologia em Paulo e Jesus. Iniciou sua
carreira docente em 1962, na Alemanha Oriental, e, em seguida, em Zurich,
mudando-se, em 1969, para a Alemanha Ocidental, como professor na Universidade
de Tübingen, onde permaneceu até sua aposentadoria, em 2003. Exerceu nessa
universidade várias funções, como a de diretor do Instituto de Hermenêutica e
diretor da Casa de estudos protestantes. Em Heidelberg foi Diretor do Centro de
Estudos protestantes e da Cátedra Hans-Georg Gadamer. Foi membro da Academia
Norueguesa de Ciências e Letras, membro do Sínodo da Igreja protestante na
Alemanha, tendo recebido vários prêmios.
Diferente de Pablo Richard e de Bernard Sesboué, Jüngel é muito
pouco conhecido no Brasil, onde tem apenas uma obra traduzida (a obra Morte, traduzida pela
Sinodal, em 2010). No entanto, é um dos pensadores protestantes mais agudos da
segunda metade do século 20 e início do século 21. Uma de suas obras
principais, Gott als Geheimnis der Welt: Zur Begründung der
Theologie des Gekreuzigten im Streit zwischen Theismus und Atheismus (em
tradução livre: Deus mistério do mundo: fundamento da teologia do Crucificado no
debate entre teísmo e ateísmo), publicada em 1982, propõe um diálogo importante
com o teísmo e o ateísmo moderno. Segundo ele, a sentença de Nietzsche,
"Deus morreu", é o ápice do pensamento metafísico, em particular do
pensamento da subjetividade, de Descartes. Em função disso, o autor tenta abrir
uma nova via para pensar Deus. Não se trata de reeditar o conflito entre o Deus
dos filósofos e o Deus de Abrão. A renúncia ao Deus dos filósofos, diz ele, não
nos dispensa do dever de pensar o ser de Deus. Deus é pensável porque ele se
tornou presente no evento de linguagem que é Jesus. Esta intervenção do dizer e
do pensar divinos engaja todo um projeto hermenêutico e mede toda a distância
entre duas imagens de Deus: o Deus acima de nós (Deus do teísmo) e o Deus no
meio de nós (Deus da fé cristã). E a diferença entre essas duas imagens nos
conduz à aporia fundamental do pensamento de Deus nos tempos modernos: como
conciliar a imutabilidade de Deus que é acima de nós com a dimensão efêmera da
história? Retomando a teologia da cruz de Lutero e de Hegel, Jüngel encontra a
solução dessa aporia no Deus crucificado. Em seguida, ele propõe uma teologia
narrativa da humanidade de Deus na qual a fé no crucificado se revela como o
fundamento da ideia trinitária de Deus. Deus aparece então como Mistério
(segredo) do mundo, porque, no amor, Deus e o ser humano partilham o mesmo Mistério
(segredo).
O silenciar-se dessas vozes desperta em quem as escutou um
sentimento de perda, e, em alguns casos, de desalento, pois é como se o mundo
ficasse mais pobre. Contudo, a paixão que movia esses teólogos a compreender e
tornar compreensível, significativo e relevante aquilo que os fazia viver e
agir, deve mover os que os escutaram a, como eles, subir nos ombros de gigantes
para antever a aurora que desponta quando a fé, iluminada pela inteligência, dá
sentido à vida e abre novos caminhos para ser e agir.
*Geraldo
Luiz De Mori é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Fonte:domtotal.com
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