O que
se questiona não são os paramentos ou formas de celebração, mas o que está por
trás de tudo isso (Unsplash/Saint John's Seminary)
Fanatismo acontece quando a
religiosidade impede a humanidade da pessoa
César Thiago do
Carmo Alves*
"A Palavra se fez
carne e habitou entre nós" (Jo 1,14). Esse versículo do prólogo do
evangelho de João expressa que Deus assume nossa humanidade para poder
salvá-la. Nesse sentido, Tertuliano, escritor eclesiástico de Cartago morto em
260, cunhou a frase "Caro cardo salutis" (A carne é o eixo da
salvação). Assim, somente fazendo uma profunda experiência da humanidade é que
se pode contemplar a divindade de Deus e ao mesmo tempo perceber o dom
salvífico. Aqui, se impõe uma pergunta no atual cenário tendo presente a
dimensão da religiosidade: E quando a religiosidade impede a humanidade da
pessoa?
Uma das respostas que
pode se ter para essa pergunta é o fanatismo religioso como causa.
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O fanatismo religioso
tem se tornado cada vez mais explícito no cenário contemporâneo. Nota-se um
apelo excessivo a Deus por meio da religião. Na verdade, o que se cultua não é
Deus mesmo, mas sim a religião. Desse modo, pode-se perceber a força e
influência que ela exerce sobre a vida das pessoas. Muitas são capazes de se
desfazerem de bens necessários para sobrevivência simplesmente pelo fato de que
o líder religioso aponta isso como o caminho para a prosperidade. Além da ideia
da prosperidade, existiria algo que vincula a pessoa fiel de forma fanática à
religião que está para além da prosperidade? Essa é a pergunta fundamental que
se impõe para se entender o fanatismo que se descortina cada vez mais forte em
nosso meio eclesial. Em busca da resposta para a pergunta que se impõe, faz-se
necessário considerar dois aspectos. São eles: 1) psicológico; 2) sociológico.
No aspecto
psicológico, o fanático religioso tende a fazer da religião um fetiche.
Atribui-se a elementos da religião forças mágicas. No âmbito católico isso é
perceptível. Ultimamente, no Brasil, tem se voltado com muita força entre
pessoas jovens, que não viveram o pré-Vaticano II, a ideia da missa em latim
como a única e verdadeira forma de celebrar. A língua latina e o rito da
celebração são envoltos numa aura que descredencia a beleza da reforma
litúrgica postulada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Nega-se até mesmo a
obra graciosa do Espírito Santo no Vaticano II. Os jovens ministros ordenados
que estão nessa linha, fazem dos paramentos seu fetiche. Busca-se nos armários
das sacristias, paramentos utilizados anteriormente à reforma da liturgia. Isso
sem contar o uso da batina. O que está em jogo aqui não são as roupas em si ou
determinada forma de celebração. O que se questiona é o que está por trás de
tudo isso. Numa rápida conversa com alguém que se insere nesse contexto
religioso pode-se perceber que se fala muito de Igreja e sua estrutura, pouco
de Deus e quase nada de comunidade e comprometimento com os mais pobres. Desse
modo, a religião está acima do próprio Evangelho. Além disso, não se admite
questionamentos. Afinal, o errado é sempre quem vai contra esses princípios. Ir
contra eles é ser apóstata, herege! A dimensão da humanização simplesmente fica
de escanteio.
Esse exemplo católico,
que é possível ser constatado tanto em alguma parte do clero como do laicato,
indica que o fanático religioso não está preocupado com Deus mesmo e as causas
que o Evangelho propõe. O que está no imaginário são as fantasias. Essas
fantasias do sagrado, por vezes, estão vinculadas à ideia de poder e de uma
pseudo-segurança institucional. Assim, cria-se um deus segundo à nossa imagem e
semelhança para satisfazer o prazer do fetiche. Uma religiosidade, literalmente,
idolátrica. A fantasia religiosa levada ao extremo causa doença psíquica. Ou,
ainda, a fantasia religiosa pode ser apenas a ponta do iceberg de
algo mais sério, psicologicamente falando, que a pessoa trás consigo e que
precisa ser trabalhada e que no caso do clero ou foi negligenciada durante o
processo formativo ou o candidato à época conseguiu camuflar muito bem. Nesse
sentido, é urgente a procura de um psicólogo para ser ajudada. O problema é que
a pessoa fanática nunca admite essa doença. É como alguém viciado em alguma
droga que afirma não estar no vício.
Do ponto de vista
sociológico, o coletivo tende a influenciar no particular. As mídias católicas
têm colaborado muito nesse campo. Ao exibirem programações com líderes
religiosos profundamente fundamentalistas, as pessoas, consumidoras daqueles
programas, vão sendo moldadas naquela perspectiva. Eles são tidos como gurus.
São inquestionáveis. Suas palavras são palavras de salvação. Tudo o que vem
desses líderes deve ser aplicado. Curiosamente, como no caso psicológico, uma
vez que ambos os aspectos estão correlacionados, essas lideranças falam muito
de instituição, pouco de Deus e quase nunca de comprometimento com os pobres e
com a comunidade. O problema é que vão se formando legiões de seguidores que
desejam impor determinadas visões que estão no lado contrário à proposta de
Jesus. Assim, tem-se uma religiosidade de autorreferencialidade.
Não se pode deixar de
considerar que esse fanatismo tem repercussões na vida pública. Em nome de um
deus, de uma igreja e de uma fé busca-se impor aquilo que se acredita para toda
a sociedade. Desse modo, o que vai contrário ao que se professa como fé, não
pode ser aceito pelo Estado. Assim, o fanatismo religioso tende a minar o
Estado laico. Usa-se o bordão: "o Estado é laico, mas o povo não".
Por um lado, essa frase tem sua razão. O povo brasileiro em sua maioria é
religioso. No entanto, nem todos acreditam da mesma forma. Esse bordão tem
servido para promover a discriminação e o ódio e frear acesso a direitos para
as minorias sociais. Enfim, uma religiosidade que desumaniza e que não consegue
se fazer próximo de quem sofre.
Uma palavra de
esperança. Mesmo em meio ao fanatismo e desumanização religiosos, existem
pessoas sérias nas igrejas, comprometidas com o reinado de Deus proposto por
Jesus. Não estão pautadas no fetiche que as prendem cegamente à religião e numa
religiosidade que enclausura. Muito pelo contrário. São pessoas críticas a ela
quando esta não está em consonância com o Evangelho. O Papa Francisco tem
demonstrado o que significa ler o mundo através das lentes da Palavra de Deus e
não por meio de fundamentalismos ou verdades que se tornaram caducas pelo fato
de serem relativas. Desse modo, ele revela que a única verdade absoluta é Deus
revelado por Jesus Cristo e as outras todas são passíveis de serem
questionadas. Sinal de saúde religiosa e, por isso, de uma vivência
humanizadora da religião.
*César Thiago do Carmo Alves é
doutor e mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia (FAJE). É graduado em Filosofia pelo ISTA e Teologia pela FAJE. Possui
especialização em Psicologia da Educação pela PUC Minas. É membro do grupo de
pesquisa Teologia e diversidade afetivo-sexual da FAJE
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