“Todo aquele que é da verdade escuta
a minha voz”
A Igreja Católica celebra, no último
domingo do Ano Litúrgico, a festa de Cristo Rei. Uma imagem
provocativa, pois quebra toda concepção que temos de “rei” e “reinado”.
Esta é a ousadia de Jesus:
proclamar-se “rei” sem tomar a Capital, sem conquista militar como os
impera-dores romanos, nem por eleições, nem por herança de família, nem por
estratégia de partido...
Certamente, Jesus utilizou a imagem
de rei e de reino, mas não quis ser rei na linha do domínio econômico, social
ou militar, mas de serviço mútuo, revelando aos homens o testemunho da verdade
de Deus e do sentido da vida. Por isso, não veio para anunciar uma guerra
apocalíptica, nem a destruição dos perversos, mas semear humanidade, a partir
da Galiléia, oferecendo a Palavra aos enfermos, marginalizados e pobres, pois
outros haviam se apropriado dela, deixando-os sem nada. Quis assim que todos
fossem reis, em um Reinado fundado na verdade de Deus e na fraternidade entre
os homens.
O evangelho deste domingo nos
apresenta uma cena inusitada: o poder terreno se depara com alguém que diz:
“sou rei”, sendo um condenado à norte, sozinho, frágil, pobre, despojado de
todo poder, que passou a noite submetido a terríveis torturas, coroado de espinhos,
sangrando e com as mãos atadas. Esse Rei é Jesus, um profeta que desafiou os
dogmas do poder terreno representado por Pilatos.
Aqui, nesta cena, se enfrentam o
opressor e o oprimido. Jesus tem autoridade sem governar, exige
sem dominar nem oprimir; propaga sua verdade sem conquistar nem impor. Seu
reinado não cria instituições de poder terreno, senão que cria fraternidade.
Onde se apoia a autoridade de Jesus
e a precariedade da autoridade do governador Pilatos? No testemunho da Verdade. Pilatos
não dizia a verdade, não caminhava na verdade, nem estava a serviço da verdade.
E Jesus era a Verdade. Em sua vida, Jesus sempre se revelou verdadeiro e
transparente; ensinou e realizou a verdade: “para isto nasci, para dar
testemunho da verdade”.
Jesus, sendo autêntico, sendo
verdade, era o verdadeiro Rei. Mas o que lhe pedia seu verdadeiro ser era
colocar-se a serviço de todo aquele que lhe necessitava, sem impor nada aos
demais. Nesse sentido, Jesus é Rei, porque vem dar testemunho da verdade, mas
não de uma verdade racional ou teológica, separada da Vida, mas da mesma vida
como transparência de amor, em comunhão com todos.
Jesus é Rei e todos podemos ser
“reis” n’Ele e com Ele; “ser rei” é viver des-centrado, sensível à realidade de
quem sofre, criativo no espírito de serviço; “ser rei” é viver na verdade do
que somos, em gesto de transparência, que é amor mútuo, conhecimento
compartilhado, sem armas, sem negociatas políticas, sem manipulação da religião
para enriquecimento ilícito.
Esta é a festa da Igreja, a festa
da Verdade. Não se trata de dizer que Jesus é a Verdade e viver
depois na mentira estruturada. Trata-se, simplesmente, de viver na verdade:
verdade que é transparência afetiva, pessoal e relacional; só a verdade nos
cura e nos liberta do apego ao poder, da ganância do dinheiro, da imposição
sobre os outros...
É da essência do ser humano existir
sempre na verdade. É preciso des-velá-la e não escondê-la. A verdade é
indobrável. Mesmo ensanguentada, não capitula. Verdade exige honestidade,
pois, sem honestidade, a verdade passa a ser produto de barganha. Verdade
violentada por interesses mesquinhos, verdade esvaziada de compaixão e de
sentimentos. Percebemos no contexto atual que o importante não é a verdade
do ser, mas a do aparentar; o importante não é a coerência de vida, mas a
mentira camuflada de verdade.
A ocultação da verdade é um dos
sintomas mais fortes do processo de desumanização que estamos vivendo; a
“cultura da mentira”, a destruição da reputação dos outros através das “fake
news”, os negócios escusos, os orçamentos secretos, o negacionismo como hábito
de morte... constituem a chamada “crise da mentira”. Quanta incoerência!
Dizemos que somos seguidores d’Aquele que “veio testemunhar a verdade” e, no
entanto, procedemos como canais por onde flui a mentira deslavada.
Des-velar a verdade de si mesmo e
acolher a verdade no outro é sinal de maturidade. A verdade é limpa. É
inocente. A verdade retira o mundo das trevas da ignorância, do negacionismo,
do “terra-planismo”.
Os “pilatos” da atualidade estão a
postos violentando a verdade em nome de uma ideologia que alimenta ódios,
preconceitos, intolerâncias...
Também nós, em nosso interior,
alimentamos um Pilatos para quem vale a mentira, o engano, a falsa promessa, a
falsa imagem... Acaso somos o que dizemos ser? Acaso vivemos o que falamos?
Desse modo, quem se fecha numa
crença ou numa ideologia, sente-se automaticamente dono da verdade. Daqui
brotam a exclusão de quem pensa e sente diferente, o fanatismo, o
proselitismo... Tudo isso a partir de uma atitude arrogante, que pretende
auto-justificar-se, apelando à posse da verdade.
Diante dos donos do poder e das
autoridades religiosas que se julgam em posse da verdade e que tem
um “deus” feito à medida de seus interesses, Jesus afirma que “veio
para dar testemunho da verdade”. A Verdade é uma das
grandes carências existenciais; ela aponta para o sentido da existência,
expressa a grande e permanente busca do ser humano. Não se trata de uma
necessidade periférica, mas uma dimensão que nos humaniza. Jesus, diante de
Pilatos, se apresenta como resposta a esta busca.
“Conhecer a verdade” é
aspiração humana inata. O ser humano tem sede de verdade. Vai
buscá-la nas dimensões mais profundas de seu espírito. Antes que “ter” a
verdade, ele quer “ser verdade”, ele deseja existir na verdade. Descobrir
a verdade é desejo mobilizador.
Compensa atravessar vigílias e
trilhar veredas para chegar à verdade. Uma das angústias humanas é não alcançar
o manancial da verdade. Enquanto existir verdade encoberta, o ser humano vive
inquieto.
A verdade clareia a vida.
Sem a verdade, a existência é sombria. A verdade gera autenticidade. Onde falta
a verdade, instala-se lacuna na existência. Quem não vive a verdade, está
“carunchado” por dentro. Impregnar-se da verdade é humanizar-se.
Ser “testemunha da
verdade” requer “viver na verdade”; e viver na verdade inclui o
reconhecimento e a aceitação da própria verdade (com suas luzes e
sombras) e da verdade dos outros. Quando alguém transita por este
caminho, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na
verdade” (S. Teresa).
Ser seguidor de Jesus é fixar
o olhar n’Ele, pois Ele é o centro do nosso caminho; ao caminhar com
Ele, vamos nos revelando e a partir d’Ele vamos descobrindo nosso ser
verdadeiro (que nos abre para acolher a verdade presente em cada
ser humano – verdade que vai além das verdades religiosas, políticas,
ideológicas...). É significativo que os antigos gregos entenderam a verdade como “a-létheia” (“sem
véu”), ou seja, quando emerge a verdade de nós mesmos.
Quem se descobre verdadeiro e sem
máscara, vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida.
E esse reconhecimento da verdade –
isso é a humildade – se transforma em luz, descanso e liberdade.
Esta é a via da humanização; e
quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos.
Texto bíblico: Jo
18,33-37
Na oração: Jesus Cristo é a
única Verdade; é na Verdade d’Ele que todos “somos, vivemos e existimos”.
- Devemos fazer um exame do
consciente coletivo diante d’Aquele que é “Testemunha da Verdade”.
- É preciso atrever-nos a discernir
com humildade o que há de verdade e o que há de mentira em nosso seguimento de
Jesus.
- Onde há verdade libertadora e onde
há mentira que nos escraviza?
- Precisamos dar passos em direção a
maiores níveis de verdade humana e evangélica em nossas vidas, em nossas
comunidades, em nossas instituições.
Pe. Adroaldo Palaoro sj.
Fonte: centroloyola.org.br
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