quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

ANO NOVO: GRATIDÃO MOBILIZADORA




“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (lc 2,20)

Nem todos os tempos são iguais. Uma coisa é o tempo do calendário, o contínuo movimento dos momentos, todos idênticos; e outra coisa é a vivência humana do tempo: há momentos em que o tempo se faz longo e outros em que se faz curto. Mais ainda, o tempo pode ser vivido como uma experiência opressiva e limitadora ou como uma experiência de plenitude. Quando vivemos o tempo como uma oportunidade para acolher o novo, para abrir-nos às surpresas da vida e para fazer-nos presentes gratuitamente, realizamos uma experiência positiva do tempo.

O tempo se torna “kairós”, ou seja, o momento oportuno para construir algo vital que possa transformar nossas vidas, o tempo propício onde todas as possibilidades estão à nossa disposição.

Integrar-nos mais pacificamente no fluir do tempo, vivê-lo amavelmente sem stress, reconciliar-nos com o tempo, desfrutá-lo com prazer e alegria de modo distendido e com paixão, ter a tranquilidade suficiente para realizar com gosto, criatividade, paz e concentração as atividades que nos cabem assumir... eis a questão! Buscar uma nova maneira de viver o tempo, de senti-lo, de captar sua força e beleza, seu sentido e sua plenitude...de perceber o pulsar profundo de nosso modo de estar na vida... eis o desafio!

Nos momentos de alegria, de prazer, de descanso, de festa... o tempo torna-se um aliado que constrói nosso ser, uma energia que nos alimenta, que nos capacita para o melhor e o mais alto.

A espiritualidade bíblica, marcada pelo “tempo” de Deus, pode nos ajudar a fazer essa “passagem” do “tempo insensato” (sem sentido) ao “tempo sensato” (com sentido). Tal espiritualidade é uma boa notícia com respeito ao modo de “estar no tempo” e nos introduz na dinâmica da vida que se abre às surpresas do “Senhor dos tempos”. Nessa perspectiva, não vivemos o tempo como se este fosse algo meramente plano e indistinto. Cada ano, cada dia e cada momento tem seu matiz, sua cor e sua novidade.

Somos seres de “travessia”, no tempo e no espaço. Cada ano de vida que passa, outro surge à nossa frente, ativando em nós dinamismos mais nobres, desejos mais oblativos, energias mobilizadoras…

Às vezes fica a sensação de que não conseguimos agradecer o suficiente diante de tudo o que foi vivido. Reconhecemos que uma lista interminável de situações e vivências não foram bem integradas e que é preciso reservar algum momento para trazê-las à memória, relê-las, re-significá-las, saboreá-las e dar graças.

Assim entendida, poderíamos dizer que a existência inteira de uma pessoa sábia é vivida entre duas palavras: “obrigado” e “sim”. Diante de tudo o que foi, “obrigado”; diante de tudo o que virá, “sim”.

Entre o “obrigado” e o “sim” transcorre a vida sábia. Isso traz uma profunda gratidão, pois só ela integra os tempos – passado-presente-futuro – no “Hoje” eterno de Deus. Só a gratidão é capaz de despertar os dinamismos e recursos internos para viver o “novo tempo” com mais inspiração e criatividade.

Nesse sentido, a memória agradecida é o húmus natural de onde brota a gratidão.

Ao fazer memória dos dons e bens recebidos do ano que passou, brota naturalmente do nosso interior, o desejo de dar uma resposta generosa e radical ao Deus que é Fonte de tudo. É a gratidão que ativa em nós o ânimo e a generosidade diante do futuro de nossa vida.

“A gratidão é a memória do coração” (Paul H. Dunn))

Aquele que é marcado pela experiência de que é tudo é dom e dado pelo Deus providente, adquire a fina percepção de que tudo é graça, tudo é “de graça”, somos “agraciados”, “cheios de graça”...

É Ele mesmo que, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensina a “sermos gratuitos e gratos”.

Só Ele é capaz de dar o verdadeiro sentido e força à expressão “de graça”; só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e encorajar atitudes oblativas em nós.

Se a memória da mente é a lembrança, a do coração encontra expressão na gratidão. Afinal, ser grato é uma forma de memória: memória agradecida, redentora. Normalmente, vivemos inúmeras bênçãos diárias que esquecemos. Quanto maior a memória do coração mais ele poderá nos mostrar o quanto somos gratos.

Na espiritualidade cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade.

O agradecimento é a experiência humana que mais mobiliza a generosidade da pessoa; a gratidão é a mais agradável das virtudes: quê virtude mais leve, alegre, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como a gratidão sem causa, uma gratidão incondicional.

A experiência nos diz que a gratidão, juntamente com o amor, é um dos sentimentos mais terapêuticos, capaz de sustentar nosso “elán vital”. Por um lado, nos afasta do funcionamento da queixa, da lamentação e do pessimismo diante de tudo o que aconteceu; por outro, ela constitui o melhor antídoto frente ao desalento ou o desânimo.

A gratidão nos centra, nos resitua, nos faz porosos, nos abre a dimensões infinitas, arrancando-nos de mecanismos egocentrados, que nos fazem girar sobre nós mesmos de um modo doentio.

Através de uma simples observação poderemos tomar consciência que a gratidão verdadeira não depende tanto daquilo que nos acontece, quanto do modo como recebemos tudo o que nos acontece. Se agradecemos só quando ocorre algo que consideramos “agradável”, é sinal que ainda não saímos de nosso egocentrismo.

Como o amor, como a alegria...., como tantos outros sentimentos nobres, a gratidão é uma arte. E, enquanto tal, precisa ser exercitada no ritmo cotidiano, onde, conscientemente, damos graças por tudo.

Na medida em que exercitamos a gratidão, ela vai nos transformando interiormente e enriquecendo nosso modo de viver a relação com os outros, com as criaturas e com o Criador Em certo sentido, poderíamos dizer que ela expande o nosso coração, favorece a alegria de viver, reforça os laços e facilita poderosamente a convivência. Por isso, quando sabemos olhar em profundidade as pessoas e a realidade, a gratidão aflora sem obstáculos. Pelo contrário, quando permanecemos presos às nossas expectativas, a frustração inevitável trará consigo a resistência, o sofrimento, a queixa, o vitimismo...

Sem a gratidão corremos o risco de nos “secar por dentro” , perdendo a simplicidade, a espontaneidade, a criatividade, a ternura... Só a gratidão alimenta a consciência de que vivemos um tempo único, um tempo decisivo para um contínuo renascimento em direção a um horizonte de sentido.

Com isso, reconhecemos e crescemos na compreensão de que, a partir da partir da dimensão espiritual, a gratidão não é simplesmente uma atitude ou qualidade, algo que podemos viver com maior ou menor intensidade; mais do que isso, a gratidão é outro nome de nossa identidade profunda: somos Gratidão.

Ao vivê-la conscientemente, experimentamos unificação e plenitude: estamos vivendo o que somos.

Texto bíblico: Lc 2,16-21

Na oração: É importante alimentar a gratidão, mantê-la viva e ativa. Não é natural que percamos a consciência do muito que temos recebido e continuamos recebendo, como possibilidades de vida e de sentido, como dons e capacidades, como criatividade e sonhos...

Tudo se pacifica quando a gratuidade marca seu ser por inteiro. A vida nova vem da Vida recebida e partilhada.

- Neste início do novo ano, assuma a atitude de pensar e falar agradecidamente, com gestos gratuitos.

- Diante d’Aquele de quem tudo procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar do seu coração uma atitude de contínua ação de graças.

Pe. Adroaldo Palaoro sj

29.12.21

Centro Loyola

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