No
lugar das violências fomentadas pelas leituras literais do texto bíblico deve
entrar uma teologia que narra a história de Deus com a humanidade que criou,
mostrando que seu amor visa a reconciliação por meio da liberdade (Priscilla Du
Preez / Unsplash)
O uso irresponsável do texto bíblico
tem graves consequências na sociedade
Fabrício Veliq*
Ainda hoje em muitos
lugares o texto bíblico é utilizado para justificar diversas atitudes, até
mesmo aquelas a respeito das quais o próprio texto condena. Tal uso
irresponsável do texto bíblico tem suas consequências na vida social de diversas
famílias brasileiras que, presas a uma literalidade bíblica, sofrem diversas
violências cometidas em seu núcleo.
Um exemplo dessas
violências é o número de mulheres que apanham de seus maridos e são
aconselhadas por seus pastores a não os denunciar, porque o amor "tudo
sofre, tudo espera e tudo crê", como diz o texto de I Coríntios 13. Ou
ainda, porque Deus teria algum plano oculto nessa situação, de maneira que tal
mulher, filhos e filhas devem aceitar esse tipo de comportamento e somente orar
para que Deus transforme o coração do sujeito violento.
Da mesma forma, a
violência psicológica é uma característica marcante do uso literal do texto
bíblico que exclui o contexto no qual ele está inserido. Basta olharmos para a
condenação constante que pessoas homossexuais, transexuais, bissexuais, dentre
outros corpos dissidentes de sexo e gênero sofrem diariamente em suas
comunidades de fé. A elas, muitas vezes, são negadas a comunhão com os irmãos,
a participação na Eucaristia e a dignidade de serem ouvidas.
Tais pessoas,
consideradas como "depravadas" pelos literalistas de plantão, também
são condenadas ao inferno por essas mesmas pessoas. Assim, além do sofrimento e
da violência que sofrem constantemente em suas vidas, ainda têm como promessa o
fogo que destrói tudo e nunca se apaga, na velha visão medieval do inferno como
uma câmara de tortura para satisfazer os desejos de um deus sádico.
Todas essas violências
causadas por uma leitura literal do texto bíblico, por sua vez, não devem ser
vistas somente como mera ignorância por parte de vários líderes religiosos.
Afinal, é sabido o quanto o texto bíblico foi usado na história para a
condenação de muitos e exaltação de alguns. Nesse sentido, não se pode ignorar
a presença de um projeto de poder premeditado por várias lideranças da
atualidade - que enxergam o texto bíblico como um aliado poderoso.
Em uma sociedade em
que o cristianismo ainda se mostra como religião majoritária, alguém afirmar
que Deus disse algo ou que Deus quer que determinada coisa seja feita tem um
peso muito grande na vida de muitas pessoas, principalmente aquelas mais
simples, que ainda veem no padre ou no pastor o representante de Deus em sua
terra.
Diante disso, é tarefa
de teólogos e teólogas combater todo tipo de fundamentalismo e ensinar, de
maneira acessível, a mensagem que está contida no texto bíblico. Sair do
academicismo se torna tarefa primordial para que o conhecimento teológico possa
se tornar palatável para pessoas que, longe das terminologias, estão ansiosas
por ouvir aquilo que Deus nos fala hoje.
Em outras palavras, a
mensagem do amor, da luta contra as injustiças, de que o mal não dura para
sempre, de que a violência não é o caminho desejado por Deus precisa ser
anunciada de maneira que faça sentido e alcance o coração das pessoas. Não pelo
medo da condenação que o Deus das leituras literais traz, mas pelo
constrangimento que todo amor pode oferecer.
Assim, no lugar das
violências fomentadas pelas leituras literais do texto bíblico, que além de
condenarem pessoas também são geradoras de morte, deve entrar uma teologia que
narra a história de Deus com a humanidade que criou, mostrando que seu amor
visa a reconciliação por meio da liberdade, que todas as pessoas são amadas e
aceitas por Ele e que toda violência, seja ela qual for, não encontra Nele
lugar de descanso e, por isso mesmo, deve ser denunciada e condenada.
Fabrício Veliq é protestante e
teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE),
Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em
Filosofia e Licenciado em Matemática (UFMG). Autor do livro: Teologia no século
21: novos contextos e fronteiras. Editora Saber Criativo. E-mail:
fveliq@gmail.com. Site: www.fabricioveliq.com.br.
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