“Sede
misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36)
O
Evangelho deste 7º domingo do Tempo comum nos situa diante desta
convicção: Deus é Misericórdia e nossa vocação cristã é viver
misericordiosamente.
Em
sua misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas
estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só
o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava
nosso coração e nos move em direção a horizontes maiores de busca,
responsabilidade e compromisso.
Duas
razões que deveriam estar presentes em quem se diz cristão, algo tão natural no
seguimento de Jesus Cristo: alegria pela experiência de que Deus nos
ama com um coração misericordioso e misericórdia como conduta libertadora
que nasce de tal experiência. Aqui nos encontramos envolvidos por uma mensagem
que é essencial e decisiva no nosso “ser cristão”.
Ser
misericordiosos e compassivos é a vocação à qual todos nós, seres humanos,
fomos chamados, inclusive aqueles que ainda não experimentaram o dom da fé ou
mesmo a esvaziaram. É o caminho para conseguir uma convivência leve, acolhedora
e aberta. As Bem-aventuranças vão nesta direção, abrindo espaço para que o Amor
misericordioso de Deus se transforme em motor da história.
Misericórdia. É
a primeira, a última, a única verdade na Igreja, em todas as suas doutrinas,
cânones e ritos. É o “atributo primeiro” de Deus proclamado por todas as
religiões e que deve inspirar o modo de proceder de todo ser humano. E, - por
que não dizer? -, também no campo da política ou da gestão da vida pública com
todas as suas instituições, partidos, programas e conferências climáticas. Ai
das políticas sem entranhas, sem alma, sem misericórdia!
A misericórdia é
a luz e a chave de nossa vida, tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta
tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Misericórdia, segundo
sua etimologia, significa “entranha”, coração, ternura diante da fragilidade e
miséria do outro. Por isso é um dos nomes mais belos de Deus; é o mesmo que
dizer “coração da Vida” e de tudo quanto existe.
A força
criativa da misericórdia de Deus põe em movimento os grandes dinamismos de
nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade
de vida nova nunca ativada.
Se
recuperarmos as atitudes de misericórdia e compaixão, teremos entrado na
vivência essencial do Evangelho. O decisivo é que a Igreja toda se deixe reger
pelo “Princípio-Misericórdia”, sem ficar reduzida simplesmente a
somar “obras de misericórdia”.
A misericórdia é
para os audazes e criativos, capazes de revolucionar a existência com atitudes
maduras de amor profético, alargando espaços onde imperam somente a doutrina,
os esquemas rígidos e as retóricas de poder e de juízo daqueles que não se
deixam conduzir pela força humanizadora da mesma Misericórdia.
À imagem
do Deus de Misericórdia fomos criados, e somos seres capazes e
necessitados de misericórdia. Uma faísca da misericórdia Deus está presente no
interior de cada ser humano, pálido reflexo dessa “forma suprema de ternura”
que é o Amor de Deus, que rompe as distâncias e se aproxima da realidade humana
como Ternura amorosa. Ou seja, se Deus não se revelasse como “misericórdia”, não
poderia ser amado pela pessoa humana como se ama o pai ou a mãe.
Deus
misericordioso nos educa e nos impulsiona a viver misericordiosamente. Sua
misericórdia penetra até o mais profundo de nosso ser, individual e
comunitário, para que pensemos, falemos, escutemos e atuemos misericordiosamente. “Oxalá
vos sintais sempre misericordiados, para serdes, por sua vez,
miseri-cordiosos” (Papa Francisco).
No
princípio era a Misericórdia. Por ela fomos criados. Foi um ato
de Misericórdia que nos deu vida. A Misericórdia é sempre geradora de
vida. A Misericórdia é o Amor que vai além da justiça, e
vir à vida foi fruto de Amor em excesso, não um ato de
justiça.
Fomos
criados por um coração misericordioso, fomos feitos por mãos
misericordiosas, pensados por uma mente misericordiosa. Vivemos
imersos na Misericórdia.
Se Deus
não fosse misericordioso, não teríamos jamais existido; e se essa Misericórdia existe
desde o princípio do nosso viver, ela ainda agora é fonte de vida,
graça da qual temos continuamente necessidade e que constantemente está
agindo em nós para alimentar o impulso da reconciliação com tudo e todos.
A misericórdia constitui
a resposta de Deus à indigência do ser humano: ela destrava a vida,
potencializa o dinamismo do “mais” e o coloca em movimento em direção a um
amplo horizonte de sentido.
O teólogo
Jon Sobrino formulou a expressão “princípio-misericórdia”, porque a
misericórdia foi a que moveu toda a ação de Deus no AT e de Jesus no NT.
Jesus
realizou muitas coisas e em muitos lugares (ensinou, curou, denunciou,
alimentou, dialogou, etc.), mas a misericórdia foi a que inspirou e moveu tudo
em sua vida e ação. Sentiu profundamente o sofrimento das pessoas,
preocupando-se sempre em aliviar sua dor. Mas é preciso destacar, no entanto,
que Jesus não se limitou à esfera do privado, mas estendeu a misericórdia a
dimensões coletivas e públicas: repartiu o alimento a uma multidão, interpelou
os ricos, pregou às massas e as alentou, denunciou os abusos das autoridades
religiosas e políticas, entrou em conflito com os manipuladores da religião do
Templo...
De acordo
com o Evangelho deste domingo, só quem entra no fluxo do “princípio
Misericórdia”, será capaz de amar até os inimigos, de quebrar o círculo de toda
violência, de bem-dizer quem amaldiçoa e rezar pelos que caluniam. Assim,
a misericórdia, recebida e experimentada, é a base da atitude
compassiva, não como ato ocasional mas como estilo de vida evangélico.
Torna-se o fundamento e a perene inspiração de uma existência de partilha e
solidariedade.
“Ser
humano” é, para Jesus, agir com misericórdia; do contrário, fica viciada
na raiz a essência do humano, como acontece com aqueles que fazem da lei e da
doutrina o centro de suas vidas, “passando do outro lado” da dor e da exclusão
do outro.
A misericórdia, como
estilo-de-vida cristã, é força oblativa que rompe distâncias e faz “morada
no outro”.
Ela se
constitui como uma “caridade-em-ação” perante o sofrimento alheio,
numa atitude fundamental de solidariedade. É a ternura que
se traduz em atos em favor da vida e não da morte.
Ela
nos descentraliza e nos coloca no caminho do co-irmão, sobretudo
daquele mais fragilizado e excluído.
É a
misericórdia que desperta em nós uma nova sensibilidade a partir do
outro, almejando com todas as forças aquilo que é o melhor para ele.
Trata-se
de uma “escuta existencial” feita de profundo respeito pela
alteridade do irmão. Não pretende que o outro se amolde à nossa maneira
de ver ou sentir, mas deixa o outro ser profundamente ele mesmo.
Assim
lançamos a base para um autêntico encontro fraterno, inspirando-nos na própria
atitude de Jesus para com as pessoas. Abrimo-nos por dentro para
captar o diferente do outro e acolhê-lo com o coração.
Texto
bíblico: Lc 6,27-38
Na
oração: A experiência da oração implica escancarar as portas de nossa
interioridade, abrindo passagem para que a Misericórdia divina transite com
liberdade pelos recantos escondidos e sombrios, ativando e despertando
dinamismos e recursos que ainda não tiveram oportunidade de se expressar.
- O atual
contexto social-político-cultural-religioso revela sua terrível face
desumanizadora, através da cultura do ódio, da intolerância, das mentiras...
Como você, seguidor(a) de Jesus, tem reagido diante disso? Sua presença tem a
marca da misericórdia ou da indiferença? Está a serviço da vida ou da morte?...
Pe. Adroaldo Palaoro
Fonte: centroloyola.org.br
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