E
tememos o mais definitivo dos silêncios: a morte (Amy Tran/Unsplash)
Temos dificuldades frente a tudo que
requer silêncio, como dormir, orar, meditar, ocupar-se com um livro O silêncio
nos atordoa
Frei Betto
Chega a amiga sem o
sorriso que lhe é peculiar. Recebo-a no parlatório do convento com o
pressentimento de que algo lhe esmaga o coração. Então, desabafa. Fala do
genocídio (mais de 630 mil mortos) promovido pelo governo federal ao minimizar
a pandemia e negar a ciência; das invasões de terras indígenas; do feminicídio
alarmante; dos múltiplos casos de racismo; dos sucessivos assassinatos de
crianças, no Rio, por supostas “balas perdidas”. E antes de se calar, conclui:
“Não suporto o silêncio de Deus”.
Uma longa pausa se abre
entre nós. Porque não me julgo portador de elixires capazes de consolar os
aflitos. Também carrego minhas angústias e tantas interrogações que me oprimem
o coração. O silêncio de Deus também me inquieta. Não creio em um deus “pronto
socorro” que venha em resposta às minhas súplicas. Nem mesmo sei quem é Deus,
digo a ela, por mais que os catecismos e as teologias se esforcem em defini-lo.
Pura bravata!
Admito que Deus
extrapola todos os nossos conceitos e nossas palavras, ideias e fantasias. Não
cabe na mente nem na alma dos humanos. É radicalmente o Outro! O Inominável,
como o considera o centésimo nome da divindade na lista muçulmana.
Mesmo na Bíblia - com
raras exceções, como no batismo de Jesus (Marcos 1,11) -, Deus se cala. Faz-se
presente disfarçado de nuvem, de brisa suave, de sopro, de anjo etc. É o “Deus
absconditus” (oculto) de Pascal. Fez silêncio inclusive na agonia do Filho
pregado na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, clamou Jesus ao
ecoar o Salmo 22 (Marcos 15,34). Aquele que Jesus tratava com tanta intimidade,
a ponto de chamá-lo Abba - “meu pai querido”, em aramaico - agora estava tão
distante que foi invocado pelo nome genérico.
Deus também fez silêncio
nos campos de concentração nazistas. Até o papa Bento XVI, ao visitar
Auschwitz, em abril de 2010, exclamou: “Por que, Senhor, permaneceste em
silêncio? Como pudeste tolerar isto? Onde estavas nesses dias?” Da mesma
forma, o salmista clamou: “Meus Deus, eu grito de dia e não me respondes!”
(Salmo 22,2). E Javé adverte no livro dos Provérbios: "Vocês me chamarão,
mas não responderei; procurarão por mim, e não me encontrarão.” (1,28).
Deus é definitivamente
um ser insondável, enigmático. É isso, na opinião de João da Cruz, que nos
permite crer ou não crer. “Onde tu te escondes?”, indaga o místico espanhol, ao
fazer eco ao profeta Isaías: “Tu és um Deus que se esconde” (45,15).
Minha amiga diz que está
em crise de fé. Como os amigos de Jó. Recordo o conselho de Alfred de Vigny:
“Nunca fale e nunca escreva sobre Deus. Restitua-lhe o silêncio com o
silêncio”.
Esse silêncio significa
a morte de Deus, como alertou Nietzsche? Óbvio que não. A religiosidade está em
plena ascensão no mundo. Nos EUA é politicamente incorreto se declarar ateu…
Figuras como o papa Francisco e o Dalai Lama se destacam como as mais
respeitáveis.
Mas convém assinalar que
Deus também é evocado pelos terroristas, pelos autocratas, como
Bolsonaro, e seu nome é amplamente tomado em vão e utilizado para justificar as
mais terríveis atrocidades.
“Graças a Deus”, roga
uma família que, por pouco, não foi esmagada pela grande pedra que se
desprendeu no canyon de Capitólio (MG). E o que dizer aos familiares das
vítimas fatais? Dizer que não mereceram a bênção de serem agraciados pela mão
salvadora de Deus?
Digo à minha amiga que
prezo com profundo respeito o silêncio de Deus. De certa forma, invejo-o. Nesse
mundo tão ruidoso, de zoadas auditivas e virtuais, guardar silêncio é uma
atitude de profunda sabedoria. De saúde psíquica. Não vale a pena falar se
minhas palavras não forem melhores que o meu silêncio.
Temos medo do silêncio.
Deus não, o que comprova a sua sapiência. Temos dificuldades frente a tudo que
requer silêncio, como dormir, orar, meditar, ocupar-se com um livro… O silêncio
nos atordoa. E tememos o mais definitivo dos silêncios – a morte.
Digo à minha amiga que
não creio em Deus, creio em Jesus. E, por tabela, no Deus de Jesus. Mas não sei
quem ele é e nem isso me preocupa. Apenas sei que, segundo Jesus, ele pode ser
encontrado em todo e qualquer gesto de amor. A fé é um salto no vazio. Creio
sem saber. O foco de minha fé não é Deus, é Jesus. E mais do que ter fé em
Jesus, quero ter a fé de Jesus. Como escrevi no poema Domingo no circo:
“Domingo redondo aberto picadeiro ∕ Ensolarado por tão forte ardor ∕ Me
refunde, queima, alucina: ∕ Olhos vendados, sem rede sobre o chão, ∕ Atiro-me
do trapézio em teu amor.”
Após nossa conversa,
minha amiga parecia menos angustiada. Fez-se prolongado e leve silêncio entre
nós. Até que ela se levantou, deu-me um abraço apertado e partiu em silêncio.
Fonte: Domtotal.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário