É
preciso ser discípulo(a) da 'escola do coração' (Pixabay)
'Por
que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu
próprio olho?'
Adroaldo
Palaoro*
O
evangelho deste domingo nos situa no mesmo cenário onde Jesus havia proclamado
as bem-aventuranças. O Mestre da Galiléia está ensinando a um amplo grupo de
seguidores(as), buscando despertar neles(as) a radicalidade que o Reino de Deus
pede, a partir de uma vida que se sabe sustentada pelas mãos providentes de
Deus e aberta à bondade, ao encontro e à solidariedade.
O
ensinamento de Jesus tinha começado um pouco antes com uma afirmação taxativa:
“Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados” (Lc
6,37). Depois da proclamação das bem-aventuranças e os “ais” contra aqueles que
buscavam honras, riqueza e poder, Jesus vai proferindo uma série de afirmações
que orientam o seu discipulado e revelam um “modo de ser e proceder” original e
humano. Ele também adverte das armadilhas nas quais se pode cair quando alguém
se apresenta como “juiz” que quer ser a referência para corrigir as limitações
dos outros, afastando-se do bom caminho.
No
discurso, encadeiam-se uma série de sentenças que alertam contra quem vive
autorreferenciado e considera que só ele tem a verdade.
*
Por quê somos tão rígidos, tão duros, tão insensíveis, tão julgadores...?
*
O que nos faz ficar petrificados por dentro? Que forças internas nos mobilizam
a ser o centro?
*
Por que temos medo do desconhecido, daquele que pensa e sente de maneira
diferente?
Em
cada um de nós o instinto do julgamento está enraizado profundamente. Podemos
dizer que todos nascemos municiados de uma cadeira de juiz. Há muitos que
cultivam ardorosamente esta profissão e encontram ocasiões abundantes para
praticá-la, submetendo-se, inclusive, a um horário esgotador.
Como
proliferam os “tribunais ambulantes e permanentes”!
Tal
atitude julgadora nos petrifica em todo o nosso ser, deixando-nos estagnados:
emoção congelada, relações congeladas, imagem de Deus congelada, visões
congeladas...
Somos
submetidos ao grande risco de ficarmos imobilizados, emparedados em nosso
corpo, petrificados em nossos pensamentos, em nosso coração e em nosso
espírito.
Podemos
estar muito retraídos, auto-centrados, tensos... e isso nos impede viver com
maior fluidez.
*
Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?
*
Como libertar o nosso coração dos medos que nos levam a excluir e rejeitar os
outros e fechar-nos numa fria rigidez?
*
Como reencontrar, no nosso cotidiano, a fluidez que habita em nós?
No
Evangelho deste domingo encontramos algumas expressões categóricas que nos
movem a abandonar este ofício julgador, bastante perigoso e rompedor de
relações. Há um apelo forte que nos convida a fazer em pedaços a cadeira de
juiz que todos levamos presa às nossas costas.
No
entanto, em muitos seguidores e seguidoras de Jesus vai amadurecendo, ao longo
da vida, a convicção de que há coisas muito mais importantes a fazer do que se
dedicar ao ofício de juízes.
É
preciso “cristificar” nossa visão para que ela não se deixe determinar pelas
aparências ou pelas limitações do outro, mas, consiga vê-lo em profundidade,
percebendo o que há de mais humano e divino em seu interior. A sabedoria de
Jesus recorda algo elementar: o outro é nosso espelho, pois o cisco que vemos
em seu olho nos está falando de uma “trave” que há no nosso; é preciso estar
sempre com os olhos e ouvidos bem abertos para nos deixar impactar pelos dons,
recursos e potencialidades humanas presentes em cada um.
“Guia
cego” é aquele que, centrado na lei, se situa acima do outro, exigindo dele
qualquer tipo de “submissão”. Isso acontece porque tal “guia” carece de
compreensão, fala a partir da fria lei e só busca alimentar e fortalecer seu
próprio ego.
O
guia autêntico, pelo contrário, considera-se a si mesmo como “acompanhante”,
fala a partir de sua própria experiência e remete cada pessoa a si mesma, na
certeza de que o único “guia” é sempre o “Guia interior”, ou “Mestre interior”,
que se expressa em cada ser humano.
Assim,
enquanto o “guia cego” acaba caindo no buraco, o acompanhante autêntico oferece
luz e espaço amplo para que cada qual vá encontrando seu próprio caminho.
Jesus
está sempre nos chamando à autenticidade, ou seja, Ele nos provoca a descer ao
mais profundo de nosso próprio ser e descobrir ali o que está de acordo com o
que na realidade somos. Por isso, Ele está sempre combatendo uma acomodação
externa às normas e preceitos. A única Lei definitiva é a que está escrita em
nosso interior e tem a marca do amor. É preciso descer ao coração e
descobri-la, para que ela inspire nosso ser e nosso proceder.
Como
cristãos temos copiado a atitude dos fariseus, dando mais valor ao cumprimento
de normas que à busca interior das exigências de nosso verdadeiro ser. Esta é a
causa de nosso fracasso na vida espiritual.
A
originalidade do Evangelho está na aventura da descoberta do “mundo interior”,
esse mundo desconhecido e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais
importante e decisivo em cada pessoa. “O homem bom tira coisas boas do bom
tesouro do seu coração” (Lc 6,45).
É
preciso ser discípulo(a) da “escola do coração” onde aprendemos a nos acolher
como dom totalmente gratuito de Deus e a entregar-nos totalmente ao seu Reino.
No
nosso contexto cultural, a imagem do coração perdeu muito de sua expressão,
tornando-se muito banalizado: corações nas emoções, nos desenhos, talhados em
árvores, nas taças e chaveiros; corações em canções, rompidos, roubados,
feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que sentem, e outros
insensíveis. O coração parece como um depósito de sentimentos.
Por
outro lado, vivemos também um contexto de muitos “corações de pedra”,
intransigentes, cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados
em jaulas de pré-juízos e de suspeitas, que acabam envenenando as relações e
rompendo os laços humanos.
O
seguimento de Jesus consiste, sobretudo, em alcançar a experiência interior que
Ele viveu, e deixar que nossa interioridade cristificada se manifeste. Fazer
caminho com Ele nos ajuda a descobrir as enormes possibilidades em nossos
próprios corações. O Coração divino que humaniza nosso coração, tornando-o
aberto e sensível a tudo o que é humano; ao mesmo tempo, ativa em nós um
coração que se faz solidário e comprometido a afastar de nossas relações tudo o
que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamen tos, preconceitos,
ódios...
“Ter
o coração nas mãos” nos capacita a olhar a realidade, compreender cada pessoa
em sua situação e viver oblativamente, a partir da gratidão e da
responsabilidade. Sentir o pulsar de nosso coração em sintonia com o Coração do
Pai nos ajuda a recuperar o “humanismo” que estamos perdendo. Humanizar nosso
coração para humanizar as relações. Por isso Jesus dava tanta importância ao
coração: “a boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt. 5,8).
Texto
bíblico: Lc 6,39-45
Na
oração: No silêncio da oração, desça até o mais profundo de
seu
coração, até chegar à corrente subterrânea de água viva; aqui você experimenta
a unidade de seu ser; aqui é o lugar da transcendência, onde a transformação
acontece.
A
intimidade não é fechar-se em si mesmo, mas abertura máxima. A partir do centro
do coração, abra-se ao coração da realidade.
-
Você deixa “transparecer” seu coração na vivência cotidiana? Coração oxidado ou
ativado pela Misericórdia?
Dom Total
*Adroaldo
Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
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