A
orientação, na espiritualidade cristã, significa fazermos o movimento de dentro
para fora, de si para um Outro maior que nós. (Pixabay)
A orientação, na espiritualidade
cristã, significa fazermos o movimento de dentro para fora, de si para um Outro
maior que nós.
Renato Carvalho
de Oliveira*
Desorientação é uma experiência humana diversificada. Fala algo de nós e
para nós. No imaginário cultural, atribuem-se diversos sentidos a alguém
desorientado. O Psicanalítico: mal-estar. O ético: agir sem referência a
valores. O existencial: existência sem lugar e sentido. O religioso:
absolutizar a si próprio e não reconhecer-se criatura.
Desde que Sigmund
Freud (1856-1939) escreveu Mal-estar na civilização (1929-1930),
passamos a diferenciar mal-estar de doença. O filósofo Lou Marinoff (1952-),
em Pergunte a Platão, adverte que é um duplo “erro tratar a doença
como se fosse um mal-estar; e tratar o mal-estar como se fosse uma doença.”
A desorientação, na
ótica psicanalítica, não é uma doença, e sim um mal-estar. O mal-estar é uma
experiência de sofrimento psíquico em que a pessoa se vê em desamparo interno,
cindida por dentro, limitada, vulnerável. O desamparo é tolhimento (castração)
do nosso desejo de satisfação direta. É ter em si a pulsão (Trieb) de
busca por satisfação, obtendo mais prazer e evitando mais dor, mas sem poder se
satisfazer diretamente, já que é a cultura que diz como.
Se a nossa satisfação
só é possível pelas mediações da cultura, a desorientação como mal-estar revela
em nós um paradoxo: vivemos a tensão entre a pulsão de satisfação das
necessidades e a impossibilidade de realizá-la diretamente. Isso fala muito de
nós e para nós. Primeiro, que não somos naturalmente orientados ou
desorientados, mas podemos ser educados a nos tornar assim. Segundo, que somos
seres de falta, como viu o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981). A função da
falta é mobilizar o desejo para algo. Ela nos orienta ou desorienta para o que
desejamos: nos faz buscadores orientados ou desorientados. A nossa vida
psíquica se tece pela alternância de orientação e desorientação. O desafio da
saúde mental é cuidarmos da nossa falta e bancarmos nosso desejo.
Esse desafio requer um
permanente cuidado ético de ocupar-se consigo, o que nos lembra a máxima grega:
“Conhece-te a ti mesmo.” Existência desorientada é não sabermos quem somos, o
que queremos e para onde vamos. A célebre frase do escritor cristão Tertuliano
de Cartago (1160-220), em Apologia (197) – “os homens se
tornam, não nascem cristãos” – e a máxima da filósofa existencialista, Simone
de Beauvoir (1908- 1986), em O segundo sexo (1949),
– “Não se nasce mulher, torna-se mulher” –, oferecem-nos uma chave de
interpretação para o sentido existencial de desorientação.
O ser humano não
nasce, torna-se orientado ou desorientado no vir a ser da existência. A
orientação e a desorientação estão no plano da vida por fazer. Dependem do modo
de ser que cada qual tece e assume para si na relação educacional com a
cultura. Eis aí a necessidade de vivermos referidos a valores. A nossa
existência ética se tece na orientação intercalada por desorientação.
Aqui, vale a intuição
do escritor existencialista Albert Camus (1913-1960), em Mito de
Sísifo (1941): “perder-se para encontrar-se”. O poeta e escritor
Eduardo Galeano (1940-2015), no poema Dos nossos medos, também já
dizia: “Nos descaminhos esperam-nos surpresas, porque é preciso perder-se para
voltar a encontrar-se.”
Sêneca, um sábio
estoico e orador romano, adverte-nos: “Quem não sabe para onde vai, qualquer
caminho serve”. Estar desorientado é perder de vista o para quê da existência e
dar passos aleatórios para um não-lugar, aquele que não realiza o humano.
Quantos de nós caminhamos sem projeto de vida e insistimos em uma vida sem
projeto.
Uma existência
desorientada é presa fácil do modo de ser programado pelo sistema capitalista:
um existir apressado e, portanto, violento. O poeta Affonso Romano de Sant’Ana,
numa belíssima crônica Tempo de delicadeza, bem que disse:
“Curioso, a delicadeza tem a ver com a lentidão. A violência tem a ver com a
velocidade. Pela pressa de viver as pessoas estão esquecendo de viver. Estão
todos apressadíssimos indo a lugar nenhum”. A pressa de chegar anula o
processo.
Parece que, no século
21, predomina um tempo devorador que transcorre sem projeto comum de sentido. A
Pandemia pôs em relevo o pandemônio como uma forma de vida sob o imperativo da
negação da vida, o que Friedrich Nietzsche (1844-1900) chamou de niilismo
negativo: um modo de existir negando valores da vida. O niilista é
alguém sem referência valorativa: mata toda referência de sentido. Estamos
imersos em sociedades desordenadas, em franco processo de barbárie social e
individual. Basta-nos ver o que Achille Mbembe constata, em Brutalismo (2021),
termo entendido como a violência inerente à tendência de destruição da vida em
nosso Planeta.
Às voltas com a
desorientação social, psíquica e existencial, as religiões ofertam o infinito
ao ser humano, como projeto de vida com sentido. Elas são uma oferta de
sentido, porque propõem o Infinito a um coração finito sedento de Absoluto. O
filósofo Blaise Pascal (1623-1662) disse: temos em nós o desejo do
infinito, mas não podemos nos dar o infinito.
O Salmo judaico 41
diz: “A minh’alma tem sede de Deus. Pelo Deus vivo anseia com ardor”. E Santo
Agostinho (354-430), em Confissões, reformula: “Meu coração anda
inquieto enquanto não repousar em ti, Senhor”. Em ambas as tradições, quem mata
a sede de infinito no coração humano é o Infinito, o Divino, porque somente
Deus tem a vida em si mesmo e pode dá-la a quem não a tem. A sede é metáfora da
falta como característica da nossa criaturalidade. O desejo do divino é
exigência interna do ser humano que o orienta para Deus e para os outros.
Santo Tomás de Aquino
(1225-1274), na Suma Teológica, sugere-nos o conceito de ordem que
traz uma clareza religiosa quanto à vida desorientada. A existência
ordenada é sinônimo do ser humano orientado para o Absoluto: aberto e
caminhando de si para Deus. A pessoa desorientada vive em estado de ingratidão:
não reconhece que a vida é dom e projeto. Ela se fecha para o dom, já que não
se reconhece criatura, ou como diria o teólogo Karl Rahner (1904-1984): um
alguém amado e desejado posto na existência por um Deus Criador e amante da
vida. A pessoa orientada vive em estado de gratidão, reconhecendo a própria
vida como dom. Vive-a referida a alguém.
Um mestre do
discernimento espiritual, Santo Inácio de Loyola (1541-1556), no livro Exercícios
Espirituais (1548), também nos auxilia quanto à experiência de
desorientação, ao falar-nos da finalidade dos EE, a saber: “Para se vencer a si
mesmo e ordenar a sua vida sem se determinar por afeição alguma que seja
desordenada”. (EE 21) O objetivo dos EE é ordenar a vida de quem deseja
fazê-los. Não é eliminar a sensibilidade humana, mas orientá-la para um fim
elevado, ético.
A desorientação, à luz
de Inácio, rima com afeto desordenado, que, nos EE, significa orbitar em torno
do eu, sendo escravo de si mesmo. O prisioneiro das paixões desordenadas é
alguém desorientado, porque a desordem é idolatrar a si mesmo: absolutizar o
próprio querer e interesse como motivação e objetivo da existência. Orientar-se
é pôr-se em exercício espiritual. E exercitar-se espiritualmente é um movimento
de culto, não mais a si, mas a Deus, de êxodo de si rumo ao Absoluto, é unir o
próprio querer e interesse ao de Deus, é desejar o que Deus quer para nós, a
vida abundante: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo
10,10).
A vida desordenada
corresponde à pessoa fechada a outrem e caminhando só para si mesma. É uma
solidão terrível, porque só existe eu no centro da relação
consigo sem espaço para o tu. O autossuficiente optou por ser
escravo de si próprio numa vida solitária, vazia do outro, a exemplo do
narcisismo ególatra, ao qual o compositor e músico Caetano Veloso referiu-se na
música Sampa: “É que Narciso só pode amar o espelho de si mesmo”.
Revela-se no modo de ser narcísico que o excesso do eu é o
culto ao igual; a ausência do tu é a negação da
diferença.
A orientação, na
espiritualidade cristã, significa fazermos o movimento de dentro para fora, de
si para um Outro maior que nós, e de fora para dentro, do Outro Infinito para
nós mesmos, o outro finito. A desorientação é não fazer movimento algum, mas
permanecer dentro de si e para si mesmo. É existir absolutizando-se.
À luz do livro Os
nagô e a morte, de Juana Elbein, e da escuta dos ensinamentos da Yalorixá
Andrea Barroso, a cosmovisão yorubana, herdada pelos Candomblés, tem uma
profunda intuição quanto à experiência de desorientação. Na compreensão geral,
uma existência desorientada é aquela que sofreu uma diminuição significativa de
axé (força vital, divina que traz movimento à vida). Uma vida orientada se
entende como aumento de axé doado pelos Orixás (protetores do ser humano). Em
sentido mais específico, a desorientação tem duplo significado: tem a ver
com falta de caminho e com mudança de rota.
Ambos os sentidos
remetem à presença ou ausência do orixá Exú, que foi, historicamente,
confundido com a figura do diabo pelo racismo religioso, herança de um falso
cristianismo que propaga a intolerância religiosa e a violência contra o
diferente. Uma vida desorientada, como falta de caminho ou de movimento, é
carente da força de Exú, visto que ele é senhor dos caminhos, do movimento
vital, das possibilidades de vida. Sem Exú, não há caminho: não há movimento
que traz o poder de realização.
Uma existência
desorientada pode ser também quem muda de rota, muda a direção e as escolhas,
ou que está vivendo um processo de transformação de si. Nesse sentido,
desorientar-se não é necessariamente negativo. É positivo, já que significa uma
existência em processo de elaboração de sentido para si em outro caminho.
Desorientar-se é sinônimo de reorientar-se e de desconstruir-se, para dar
espaço a novas formas de vida. Essa experiência é dinamismo de Exú, porque ele,
como ser de comunicação, traz movimento. Ele é um comunicador e, assim,
linguagem com poder de nos alterar. Faz sentido dizer que a linguagem nos
altera, pois ela nos constrói, nos desconstrói e nos reconstrói. Exú como
linguagem que nos altera é princípio que dá forma a quem somos no tornar-se
quem se é. Construir-se, desconstruir-se para reconstruir-se. Isso é caminho e
movimento de axé.
Essa sabedoria da
existência vivida à luz dessa fé ancestral ensina ao Ocidente que sem
movimento, sem Exú, não há caminho, nem poder de realização, tampouco vida
fecunda. Sem caminho não há projeto de vida, nem ser humano realizado.
Portanto, a
desorientação e o contrário dela não são da ordem de um discurso fácil, muitas
vezes, proferido de um púlpito institucional (econômico, religioso, político)
para domar consciências e controlar vidas: desorientá-las para orientá-las a
interesses privados e rentáveis. Ambas implicam a vida em perspectiva. Tanto na
orientação, quanto na desorientação, a vida diz algo de nós e para nós:
enunciam verdades profundas acerca do humano referido a si, a outrem e ao
Divino.
A desorientação de
sociedades desordenadas confirma que somos criaturas finitas e seres de falta,
e, por isso, podemos decidir projetar a vida livremente com ou sem o auxílio
divino. No itinerário cristão, projeto de vida é encontrar em si a imagem e
semelhança de Deus e, nesse eu ideal, orientar a vida para escolhas feitas:
“Olhando a Ele, sabemos quem somos”. É cada um tornar-se si mesmo, segundo o
que Deus sonhou antes da Criação do ser humano: sermos imagem do Filho Jesus.
Na sabedoria religiosa
afro-brasileira, projeto de vida é equivalente a assumir um caminho de bom
caráter, com auxílio de Exú, senhor da firmeza de caráter, da vida
disciplinada, organizada, individualizada. Aqui, a experiência do caminho é
belíssima, uma vez que fazer o caminho da ética afrodiaspórica é deixar-se
fazer pelo divino poder da realização do caminho de bom caráter: o bom caminho
nos faz enquanto o fazemos, com liberdade de escolhas. Eis a potência ética que
Exú confere ao projeto de vida!
*Bacharel, Licenciado e Mestre em
Filosofia; Especialista em Juventude no Mundo Contemporâneo; Bacharelando em
Teologia (renatoamdg@protonmail.com).
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