quinta-feira, 3 de março de 2022

A DESORIENTAÇÃO DIZ ALGO DE NÓS E PARA NÓS

A orientação, na espiritualidade cristã, significa fazermos o movimento de dentro para fora, de si para um Outro maior que nós. (Pixabay)
A orientação, na espiritualidade cristã, significa fazermos o movimento de dentro para fora, de si para um Outro maior que nós.
Renato Carvalho de Oliveira*
Desorientação é uma experiência humana diversificada. Fala algo de nós e para nós. No imaginário cultural, atribuem-se diversos sentidos a alguém desorientado. O Psicanalítico: mal-estar. O ético: agir sem referência a valores. O existencial: existência sem lugar e sentido. O religioso: absolutizar a si próprio e não reconhecer-se criatura.
Desde que Sigmund Freud (1856-1939) escreveu Mal-estar na civilização (1929-1930), passamos a diferenciar mal-estar de doença. O filósofo Lou Marinoff (1952-), em Pergunte a Platão, adverte que é um duplo “erro tratar a doença como se fosse um mal-estar; e tratar o mal-estar como se fosse uma doença.”
A desorientação, na ótica psicanalítica, não é uma doença, e sim um mal-estar. O mal-estar é uma experiência de sofrimento psíquico em que a pessoa se vê em desamparo interno, cindida por dentro, limitada, vulnerável. O desamparo é tolhimento (castração) do nosso desejo de satisfação direta. É ter em si a pulsão (Trieb) de busca por satisfação, obtendo mais prazer e evitando mais dor, mas sem poder se satisfazer diretamente, já que é a cultura que diz como.
Se a nossa satisfação só é possível pelas mediações da cultura, a desorientação como mal-estar revela em nós um paradoxo: vivemos a tensão entre a pulsão de satisfação das necessidades e a impossibilidade de realizá-la diretamente. Isso fala muito de nós e para nós. Primeiro, que não somos naturalmente orientados ou desorientados, mas podemos ser educados a nos tornar assim. Segundo, que somos seres de falta, como viu o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981). A função da falta é mobilizar o desejo para algo. Ela nos orienta ou desorienta para o que desejamos: nos faz buscadores orientados ou desorientados. A nossa vida psíquica se tece pela alternância de orientação e desorientação. O desafio da saúde mental é cuidarmos da nossa falta e bancarmos nosso desejo.
Esse desafio requer um permanente cuidado ético de ocupar-se consigo, o que nos lembra a máxima grega: “Conhece-te a ti mesmo.” Existência desorientada é não sabermos quem somos, o que queremos e para onde vamos. A célebre frase do escritor cristão Tertuliano de Cartago (1160-220), em Apologia (197) – “os homens se tornam, não nascem cristãos” – e a máxima da filósofa existencialista, Simone de Beauvoir (1908- 1986), em O segundo sexo (1949), – “Não se nasce mulher, torna-se mulher” –, oferecem-nos uma chave de interpretação para o sentido existencial de desorientação.
O ser humano não nasce, torna-se orientado ou desorientado no vir a ser da existência. A orientação e a desorientação estão no plano da vida por fazer. Dependem do modo de ser que cada qual tece e assume para si na relação educacional com a cultura. Eis aí a necessidade de vivermos referidos a valores. A nossa existência ética se tece na orientação intercalada por desorientação.
Aqui, vale a intuição do escritor existencialista Albert Camus (1913-1960), em Mito de Sísifo (1941): “perder-se para encontrar-se”. O poeta e escritor Eduardo Galeano (1940-2015), no poema Dos nossos medos, também já dizia: “Nos descaminhos esperam-nos surpresas, porque é preciso perder-se para voltar a encontrar-se.”
Sêneca, um sábio estoico e orador romano, adverte-nos: “Quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”. Estar desorientado é perder de vista o para quê da existência e dar passos aleatórios para um não-lugar, aquele que não realiza o humano. Quantos de nós caminhamos sem projeto de vida e insistimos em uma vida sem projeto.
Uma existência desorientada é presa fácil do modo de ser programado pelo sistema capitalista: um existir apressado e, portanto, violento. O poeta Affonso Romano de Sant’Ana, numa belíssima crônica Tempo de delicadeza, bem que disse: “Curioso, a delicadeza tem a ver com a lentidão. A violência tem a ver com a velocidade. Pela pressa de viver as pessoas estão esquecendo de viver. Estão todos apressadíssimos indo a lugar nenhum”. A pressa de chegar anula o processo.
Parece que, no século 21, predomina um tempo devorador que transcorre sem projeto comum de sentido. A Pandemia pôs em relevo o pandemônio como uma forma de vida sob o imperativo da negação da vida, o que Friedrich Nietzsche (1844-1900) chamou de niilismo negativo: um modo de existir negando valores da vida. O niilista é alguém sem referência valorativa: mata toda referência de sentido. Estamos imersos em sociedades desordenadas, em franco processo de barbárie social e individual. Basta-nos ver o que Achille Mbembe constata, em Brutalismo (2021), termo entendido como a violência inerente à tendência de destruição da vida em nosso Planeta.
Às voltas com a desorientação social, psíquica e existencial, as religiões ofertam o infinito ao ser humano, como projeto de vida com sentido. Elas são uma oferta de sentido, porque propõem o Infinito a um coração finito sedento de Absoluto. O filósofo Blaise Pascal (1623-1662) disse: temos em nós o desejo do infinito, mas não podemos nos dar o infinito.
O Salmo judaico 41 diz: “A minh’alma tem sede de Deus. Pelo Deus vivo anseia com ardor”. E Santo Agostinho (354-430), em Confissões, reformula: “Meu coração anda inquieto enquanto não repousar em ti, Senhor”. Em ambas as tradições, quem mata a sede de infinito no coração humano é o Infinito, o Divino, porque somente Deus tem a vida em si mesmo e pode dá-la a quem não a tem. A sede é metáfora da falta como característica da nossa criaturalidade. O desejo do divino é exigência interna do ser humano que o orienta para Deus e para os outros.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274), na Suma Teológica, sugere-nos o conceito de ordem que traz uma clareza religiosa quanto à vida desorientada. A existência ordenada é sinônimo do ser humano orientado para o Absoluto: aberto e caminhando de si para Deus. A pessoa desorientada vive em estado de ingratidão: não reconhece que a vida é dom e projeto. Ela se fecha para o dom, já que não se reconhece criatura, ou como diria o teólogo Karl Rahner (1904-1984): um alguém amado e desejado posto na existência por um Deus Criador e amante da vida. A pessoa orientada vive em estado de gratidão, reconhecendo a própria vida como dom. Vive-a referida a alguém.
Um mestre do discernimento espiritual, Santo Inácio de Loyola (1541-1556), no livro Exercícios Espirituais (1548), também nos auxilia quanto à experiência de desorientação, ao falar-nos da finalidade dos EE, a saber: “Para se vencer a si mesmo e ordenar a sua vida sem se determinar por afeição alguma que seja desordenada”. (EE 21) O objetivo dos EE é ordenar a vida de quem deseja fazê-los. Não é eliminar a sensibilidade humana, mas orientá-la para um fim elevado, ético.
A desorientação, à luz de Inácio, rima com afeto desordenado, que, nos EE, significa orbitar em torno do eu, sendo escravo de si mesmo. O prisioneiro das paixões desordenadas é alguém desorientado, porque a desordem é idolatrar a si mesmo: absolutizar o próprio querer e interesse como motivação e objetivo da existência. Orientar-se é pôr-se em exercício espiritual. E exercitar-se espiritualmente é um movimento de culto, não mais a si, mas a Deus, de êxodo de si rumo ao Absoluto, é unir o próprio querer e interesse ao de Deus, é desejar o que Deus quer para nós, a vida abundante: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
A vida desordenada corresponde à pessoa fechada a outrem e caminhando só para si mesma. É uma solidão terrível, porque só existe eu no centro da relação consigo sem espaço para o tu. O autossuficiente optou por ser escravo de si próprio numa vida solitária, vazia do outro, a exemplo do narcisismo ególatra, ao qual o compositor e músico Caetano Veloso referiu-se na música Sampa: “É que Narciso só pode amar o espelho de si mesmo”. Revela-se no modo de ser narcísico que o excesso do eu é o culto ao igual; a ausência do tu é a negação da diferença.
A orientação, na espiritualidade cristã, significa fazermos o movimento de dentro para fora, de si para um Outro maior que nós, e de fora para dentro, do Outro Infinito para nós mesmos, o outro finito. A desorientação é não fazer movimento algum, mas permanecer dentro de si e para si mesmo. É existir absolutizando-se.
À luz do livro Os nagô e a morte, de Juana Elbein, e da escuta dos ensinamentos da Yalorixá Andrea Barroso, a cosmovisão yorubana, herdada pelos Candomblés, tem uma profunda intuição quanto à experiência de desorientação. Na compreensão geral, uma existência desorientada é aquela que sofreu uma diminuição significativa de axé (força vital, divina que traz movimento à vida). Uma vida orientada se entende como aumento de axé doado pelos Orixás (protetores do ser humano). Em sentido mais específico, a desorientação tem duplo significado: tem a ver com falta de caminho e com mudança de rota.
Ambos os sentidos remetem à presença ou ausência do orixá Exú, que foi, historicamente, confundido com a figura do diabo pelo racismo religioso, herança de um falso cristianismo que propaga a intolerância religiosa e a violência contra o diferente. Uma vida desorientada, como falta de caminho ou de movimento, é carente da força de Exú, visto que ele é senhor dos caminhos, do movimento vital, das possibilidades de vida. Sem Exú, não há caminho: não há movimento que traz o poder de realização.
Uma existência desorientada pode ser também quem muda de rota, muda a direção e as escolhas, ou que está vivendo um processo de transformação de si. Nesse sentido, desorientar-se não é necessariamente negativo. É positivo, já que significa uma existência em processo de elaboração de sentido para si em outro caminho. Desorientar-se é sinônimo de reorientar-se e de desconstruir-se, para dar espaço a novas formas de vida. Essa experiência é dinamismo de Exú, porque ele, como ser de comunicação, traz movimento. Ele é um comunicador e, assim, linguagem com poder de nos alterar. Faz sentido dizer que a linguagem nos altera, pois ela nos constrói, nos desconstrói e nos reconstrói. Exú como linguagem que nos altera é princípio que dá forma a quem somos no tornar-se quem se é. Construir-se, desconstruir-se para reconstruir-se. Isso é caminho e movimento de axé.
Essa sabedoria da existência vivida à luz dessa fé ancestral ensina ao Ocidente que sem movimento, sem Exú, não há caminho, nem poder de realização, tampouco vida fecunda. Sem caminho não há projeto de vida, nem ser humano realizado.
Portanto, a desorientação e o contrário dela não são da ordem de um discurso fácil, muitas vezes, proferido de um púlpito institucional (econômico, religioso, político) para domar consciências e controlar vidas: desorientá-las para orientá-las a interesses privados e rentáveis. Ambas implicam a vida em perspectiva. Tanto na orientação, quanto na desorientação, a vida diz algo de nós e para nós: enunciam verdades profundas acerca do humano referido a si, a outrem e ao Divino.
A desorientação de sociedades desordenadas confirma que somos criaturas finitas e seres de falta, e, por isso, podemos decidir projetar a vida livremente com ou sem o auxílio divino. No itinerário cristão, projeto de vida é encontrar em si a imagem e semelhança de Deus e, nesse eu ideal, orientar a vida para escolhas feitas: “Olhando a Ele, sabemos quem somos”. É cada um tornar-se si mesmo, segundo o que Deus sonhou antes da Criação do ser humano: sermos imagem do Filho Jesus.
Na sabedoria religiosa afro-brasileira, projeto de vida é equivalente a assumir um caminho de bom caráter, com auxílio de Exú, senhor da firmeza de caráter, da vida disciplinada, organizada, individualizada. Aqui, a experiência do caminho é belíssima, uma vez que fazer o caminho da ética afrodiaspórica é deixar-se fazer pelo divino poder da realização do caminho de bom caráter: o bom caminho nos faz enquanto o fazemos, com liberdade de escolhas. Eis a potência ética que Exú confere ao projeto de vida!
*Bacharel, Licenciado e Mestre em Filosofia; Especialista em Juventude no Mundo Contemporâneo; Bacharelando em Teologia (renatoamdg@protonmail.com).

 Domtotal


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário