“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do
Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (Lc 4,1)
O primeiro domingo da Quaresma sempre apresenta o relato das
tentações de Jesus no
deserto, que ajuda a desvelar o sentido de sua missão, seu caminho, seu
destino. É relevante o fato de que se vincule a ida de Jesus ao deserto após o
batismo, sendo conduzido pelo Espírito.
O deslocamento de Jesus ao deserto está em profunda sintonia
com a experiência vivida pelo povo judeu.
Foi no deserto que
Israel aprendeu a descobrir e a confiar em Deus. Longe da segurança do Egito,
emergiu o que havia no fundo do seu coração. Os profetas cantaram o tempo do deserto como
tempo das obras maravilhosas
de Deus. Foi no deserto que
o povo de Israel sentiu profundamente sua pequenez e total dependência de Deus.
Não existiam caminhos prontos.
Era preciso discutir, planejar, rezar, lutar e sonhar para fortalecer a
caminhada. No fundo, o Êxodo foi
um profundo tempo de discernimento coletivo, que desembocou numa radical opção
pela liberdade, porque um povo só é
livre quando pode decidir o rumo de seu caminhar:
Deserto: lugar da Aliança, escola da intimidade com o
Senhor; expressão que, mais do que um determinado lugar, indica uma experiência
forte de Deus.
Jesus, como todos os profetas, antes
de assumir sua missão, foi conduzido pelo Espírito ao deserto. Frequentemente
Ele recorria a esta experiência em meio à sua vida ativa: afastava-se para
lugares solitários, confrontava a sua missão com a Vontade do Pai.
Todos os personagens bíblicos, todos os(as) santos(as)
passaram pela experiência de deserto: peregrinação
interior, confronto com a própria vida, comunhão com o Senhor, descoberta da
própria missão...
“Eu
o(a) levarei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração” (Os. 2,16).
Segundo os evangelhos, as tentações experimentadas
por Jesus no deserto não são propriamente de ordem moral. Não se trata de uma
eleição entre o bem e o mal. São tentações que apresentam maneiras falsas de
entender e viver sua missão. O tempo do deserto foi, para Jesus, um tempo
de discernimento sobre os
melhores “meios” para viver seu messianismo. As tentações não diziam respeito
ao “ser Messias” de Jesus; isto estava claro e fora confirmado pela experiência
do seu batismo: “Tu és o meu filho amado”.
As tentações de Jesus aconteceram no campo das mediações: entre pensar em seu
próprio interesse ou deixar-se conduzir pela vontade do Pai; entre impor seu
poder como Messias ou colocar-se a serviço daqueles que mais precisam; entre
buscar a própria glória e prestígio ou manifestar a compaixão de Deus para com
aqueles que sofrem; entre evitar riscos para fugir da perseguição ou
entregar-se fielmente à sua missão, confiando somente no Pai.
De fato, os meios apresentados
pelo “tentador”, humanamente falando, são os meios mais eficazes que ninguém
poderia imaginar: possibilidade de transformar as pedras em pão, o prestígio
indiscutível de quem salta do alto do templo, sustentado pelos anjos e, para
culminar, todo o mundo a seus pés.
Quem resiste a um homem com tais meios?
Todos seriam atraídos porque, em definitiva, teria entre suas
mãos o poder total e o domínio absoluto.
Eis aqui a intuição e a genial proposta do tentador: salvar e
libertar toda a humanidade, mas mediante o poder, o prestígio e a dominação. O tentador
não pretende que Jesus se afaste de seu fim, senão
que procure atingir esse fim, usando
os meios que são
exatamente o oposto da solidariedade.
Para a Liturgia, parece ser de uma evidência fundamental que
a pedagogia quaresmal devesse começar por des-velar (tirar o véu) a desordem na afetividade. No caminho da
vivência cristã, percebemos uma “aderência afetiva” (fixação
afetiva) a coisas, posses, pessoas, ideias, cargos, poder, prestígio, status,
ídolos, dependências.... que somada a outras, passa a constituir uma estrutura
de “maus afetos” (“afetos desordena-dos”),
esvaziando ou atrofiando o seguimento de Jesus
A Quaresma, nesse sentido, apresenta-se como uma pedagogia
para aprender a ordenar nossos afetos”,
libertar-nos dos afetos desordenados e
assim percorrer o caminho do desejo mais
profundo: estratégia centrada em Deus, leve e cheia de graça, uma aventura...
O desejo de poder, de possuir, de ser o centro (ego
inflado) confunde nossa vida. E já não se trata mais de uma lição moral sobre o
vício ou a virtude, mas do impacto psicológico e espiritual que se dá em nós
pelo fato de nos sentirmos apegados a algo ou a alguém, com a consequente perda
de liberdade e o perigo da dependência que esse apego
causa. O apego às coisas e às pessoas impede-nos de mover com facilidade.
Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do
movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
“Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do
seu sofrimento”.
É necessário introduzir um princípio “ordenador” em nossa vida, que
inspire todo o nosso ser e o nosso agir, até que a “afeição” se converta em
identificação existencial com Jesus Cristo.
Esse novo objeto deve
ter uma repercussão decisiva na configuração da vida. Isto é, somos chamados a
modificar profundamente o mundo de valores,
pensamentos, condutas...
É necessário, ao iniciar o percurso quaresmal, detectar
os condicionamentos afetivos (amarras)
que de fato limitam a nossa liberdade,
bloqueando-nos diante da proposta de vida que Jesus nos apresenta.
O que está em jogo no “deserto quaresmal” é chegar a conhecer-se profundamente,
encontrando a raiz do
próprio ser nos afetos desordenados.
Esse conhecimento interior, profundo, é condição
indispensável para poder dispor de si, em maturidade de liberdade. Sem ordenar
os afetos o ser humano não é
verdadeiramente livre. A “desordem” nos
afetos produz em sua liberdade uma essencial falsificação: faz tomar como absolutos o que são
coisas relativas.
Só ordenando os afetos a
pessoa se situa diante de Deus, reconhecendo-O como Absoluto.
Há afetos organizados
negativamente por acúmulo de “experiências negativas”. Para
atingi-los, a pedagogia quaresmal coloca “cargas
afetivas opostas” (pessoa de Jesus, sua missão, o Reino, ...)
Sabemos que não se pode suprimir (matar) os afetos; o que se pode
fazer é mudar a orientação (“ordenar”)
dos afetos, ou seja,
reorientar as “aderências afetivas” de
certos objetos ou pessoas para um horizonte de sentido: amor a Jesus Cristo e a
seu Reino.
Nesse sentido, nossa quaresma torna-se
um “estar com Jesus” no deserto,
para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida.
A quaresma é
um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço,
alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de reconstrução de nós
mesmos (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço,
mais compaixão, mais solidariedade...).
Nossos “apegos” se
assemelham às construções à beira do rio que nos fixam num determinado lugar
que nos parece confortável, desejável e seguro. Mas, se assim agirmos,
afastamo-nos da correnteza da vida e não vai fluir em nós nem crescimento e nem
progresso rumo à liberdade dos filhos de Deus.
A experiência de deserto passa
a ser “tempo e lugar” de decisão, de
orientação decisiva da vida, de enraizamento de nossos valores, de consciência
maior da nossa identidade pessoal e da nossa missão... O mestre do deserto é
o silêncio; o deserto tem valor
porque revela o silêncio, e
o silêncio tem valor
porque nos revela Deus e a nós mesmos.
O deserto é
o grande auditório para ouvir Deus; “solidão” cheia
de presença. Ainda que sozinhos, sentimo-nos solidários, em comunhão com todos.
O decisivo é “deixar-nos conduzir” pelo
Espírito. Aqui não há engano.
Texto bíblico: Lc
4,1-13
Na oração: Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições,
bens... que consideramos ser Vontade de Deus; na realidade é
tudo “projeção” de nossos medos, de
nossa insegurança...
O desafio permanente é este: examinar as “coisas” que estão
ocupando por completo nossa existência e “tomando conta de nós” a ponto de
bloquear o fluxo da graça e da vida.
- Quais “tentações” estão
travando sua vida, impedindo-o de seguir a Jesus mais livremente?
- Rezar suas “pulsões desordenadas” que atrofiam sua sintonia
com Deus e sua abertura aos outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Fonte:centroloyola.org.br
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