“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o contêm.”
(Bertolt Brecht)

A violência da guerra na Ucrânia é de tal modo desmesurada, exorbitante e excessiva que, perante ela, ninguém fica indiferente. Imagem de edifício destruído. Foto © ACN Portugal
Quando falamos de violência imediatamente a identificamos com o abuso de força ou de poder sobre algo ou alguém, ou seja, pensamos num agressor e num agredido despojado dos seus direitos e que, enquanto tal, fica reduzido à condição de vítima. Etimologicamente ligamos este termo à sua raiz latina que é a “vis”, ou seja, a força ou vigor e é quase consensual defini-lo como um uso ilegítimo dessa força.
A violência é um conceito presente na filosofia, nomeadamente nos domínios da ética e da política onde tem sido analisado em diferentes perspectivas. Recorrendo a alguns nomes do passado que se debruçaram sobre este tema lembramos Hobbes e Nietzsche que o consideraram como natural à condição humana, ou Rousseau que o rejeitou como opressão e ausência de direito, ou Marx que exaltou a violência quando ela se coloca como resposta à opressão, ou Hannah Arendt que a definiu pelo seu carácter instrumental, demarcando-a de outros conceitos como o poder e a autoridade com os quais tem sido habitualmente associada.
Byung-Chul Han é um filósofo contemporâneo que nos tem oferecido reflexões pertinentes sobre diferentes problemas da actualidade. A sociedade em que vivemos é por ele apelidada de “transparente” pois “o vento digital da comunicação e da informação tudo penetra e tudo torna transparente”.[1] Han sustenta que a violência é um dos problemas maiores com que hoje nos deparamos. Para ele, a violência tem sido uma presença constante na história dos homens, assumindo diferentes formas mas nunca deixando de se manifestar, mesmo quando se torna anónima, coincidindo com a própria sociedade.[2]
No mundo greco-romano a violência era a insígnia do poder apresentando-se sem disfarce nas modalidades de ataque directo e de confronto, características que se mantiveram ao longo dos tempos, embora as técnicas de dominação tenham evoluído e hoje recorram à interiorização, manifestando-se nas convicções e nos comportamentos. O que não impede mas antes estimula o cultivo do sentimento de poder e de invulnerabilidade, concretizado na corrida ao armamento nuclear por parte dos países mais fortes.
Embora a sociedade actual se veja a si mesma como uma sociedade da liberdade e do prazer, ela é atravessada pela instabilidade das oposições, nas quais se defrontam e opõem amigo e inimigo pois, como sustenta Carl Schmidt, a essência do político baseia-se nesta distinção, entendendo-se a violência como essência da política e transformando-se a fraternidade em inimizade. No dizer de Han “o meu irmão é o meu inimigo”.[3] Considerando que a violência rouba às pessoas e aos povos toda a possibilidade de acção, aniquilando-os e neutralizando-os, o filósofo coreano coloca em contraste violência e poder, sustentando que este é autor da construção e da manutenção de espaços, enquanto aquela é destrutiva, sendo em si mesmo diabólica pois deixa o vazio como rasto, atirando as suas vítimas para uma passividade radical (Han, pg. 89).
É este tipo de violência que actualmente nos passa diariamente em comentários e noticiários da televisão, a propósito da situação na Ucrânia. De facto, constantemente somos confrontados com situações que não imaginaríamos possíveis em sociedades como a nossa, onde as pessoas se habituaram a viver um dia a dia tranquilo e em que a guerra se circunscrevia aos telejornais, apresentando-se como algo distante em países longínquos. Na realidade, os acontecimentos que recentemente temos vivido mostram-nos uma violência que nos é próxima, pois recaiu sobre um país europeu, sobre pessoas com os nossos hábitos e valores, habituadas durante muito tempo a uma vida tranquila na qual a guerra se colocava como um horizonte distante e improvável.
A violência da guerra na Ucrânia é de tal modo desmesurada, exorbitante e excessiva que, perante ela, ninguém fica indiferente. Afecta cada um de nós pois põe em causa o sentimento de pertença a uma humanidade comum, criando barreiras intransponíveis entre atacantes e atacados e obrigando-nos a tomar partido.
No capítulo final da sua Topologia da Violência, publicada em 2019, Buing-Chul-Han alerta-nos para a transformação topológica da violência como fundamento da passagem de uma sociedade da soberania para uma sociedade do rendimento, onde cada um se auto explora, mergulhado no sentimento enganador da liberdade. Fala-nos de um sujeito que não pode proteger-se da violência porque é ele mesmo quem a provoca; fala-nos de uma vida nua “porque se despe de toda a transcendência dos valores” (ob.cit.pg. 153).
A catástrofe que os ucranianos hoje vivem na pele abalou a humanidade, mas simultaneamente obrigou-a tomar partido e a defender valores, desinstalou-nos de uma tranquilidade egoísta lembrando-nos a fragilidade em que assenta as nossas vidas. Perante esta guerra ninguém fica indiferente e, seja qual for o partido que abraçarmos, comove-nos o sofrimento de pessoas como nós que inesperadamente foram despojadas de tudo o que consideramos essencial nas nossas vidas. Daí a resposta generosa que temos dado aos refugiados que encontraram em Portugal um porto de abrigo.
Hoje tive a visita de um dos meus netos anunciando-me que parte amanhã numa carrinha para a Ucrânia, tentando trazer refugiados para Portugal. Apesar do receio que me causa esta viagem, fico contente que os jovens se mobilizem e se sintam tocados perante o sofrimento de um povo. Deste modo é possível dizer que a violência que nos bateu à porta despertou sentimentos de compaixão e de solidariedade, levando-nos a sair da nossa zona de conforto e a colocarmo-nos no lugar do outro, procurando tanto quanto possível minorar o seu sofrimento.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa.
[1] Byung-Chul Han, A Sociedade da Transparência, Lisboa, Relógio D’Água, 2014.
[2] Byung-Chul Han, Topologia da Violência, Lisboa, Relógio D’Água, 2019.
[3] Topologia da Violência, pgs. 53-63.
Sete Margens
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