HOMILIA DO SANTO PADRE
MISSA CRISMAL
(Quinta-feira Santa, 14 de abril de
2022)
Na leitura que ouvimos do profeta
Isaías, o Senhor faz uma promessa cheia de esperança que nos diz intimamente
respeito: «Vós sereis chamados “Sacerdotes do Senhor”, e nomeados “Ministros do
nosso Deus”. (...) Dar-lhes-ei fielmente a sua recompensa e farei com eles uma
aliança eterna» (Is 61, 6.8). Ser sacerdote é uma graça, queridos
irmãos, uma graça muito grande, que não se destina primariamente a nós, mas aos
fiéis;[1] e, para o nosso povo, é um grande dom que o Senhor escolha, dentre o
seu rebanho, alguns que se ocupem das suas ovelhas, de forma exclusiva, como
pais e pastores. É o próprio Senhor que dá a recompensa ao sacerdote:
«dar-lhes-ei fielmente a sua recompensa (Is 61, 8). E Ele, o sabemos,
é bom pagador, embora tenha as suas peculiaridades como a de pagar primeiro os
últimos e depois os primeiros: é no seu estilo.
A leitura do livro do Apocalipse
diz-nos qual é a recompensa do Senhor. É o seu Amor e o perdão incondicional
dos nossos pecados com o preço do seu sangue derramado na Cruz: Aquele «que nos
ama e nos purifica dos nossos pecados com o seu sangue, e fez de nós um reino,
sacerdotes para Deus e seu Pai» (Ap 1, 5-6). Não há recompensa
maior do que a amizade com Jesus, não esquecer isto. Não há paz maior do que o
seu perdão, e isto o sabemos tudo. Não há preço mais elevado do que o seu
precioso Sangue: não permitamos que seja aviltado com uma conduta indigna.
Queridos irmãos sacerdotes, se
lermos tudo isto com o coração, veremos que se trata de convites do Senhor para
Lhe sermos fiéis, fiéis à sua Aliança, para nos deixarmos amar, nos deixarmos
perdoar; são convites não só para nosso próprio proveito, mas também para
podermos assim servir, com uma consciência pura, o santo povo fiel de Deus.
Este povo merece-o, e também tem necessidade. O Evangelho de Lucas conta que
Jesus, depois de ter lido a passagem do profeta Isaías diante do seu povo, Se
sentou; e acrescenta: todos «tinham os olhos fixos n’Ele» (Lc 4,
20). Também o Apocalipse nos fala hoje de olhos fixos em Jesus, da atração
irresistível do Senhor crucificado e ressuscitado que nos leva a reconhecê-Lo e
adorá-Lo: «Olhai; Ele vem no meio das nuvens! Todos os olhos O verão, até mesmo
os que O trespassaram. Todas as nações da terra se lamentarão por causa d’Ele.
Sim. Amen!» (Ap 1,7). A graça final, quando o Senhor ressuscitado
voltar, será a graça de O reconhecermos de forma imediata: vê-Lo-emos
trespassado, reconheceremos que é Ele e também quem somos nós: pecadores, e
nada mais!
«Fixar os olhos em Jesus» é uma
graça que devemos cultivar como sacerdotes. No fim do dia, é bom olhar para o
Senhor e deixar que Ele contemple o nosso coração, juntamente com o coração das
pessoas que encontramos. Não se trata de contabilizar os pecados, mas duma
contemplação amorosa em que vemos o nosso dia com o olhar de Jesus repassando
assim as graças do dia, os dons e tudo o que Ele fez por nós a fim de Lhe
agradecermos. E mostramos-Lhe também as nossas tentações, para as
identificarmos e rejeitarmos. Como vemos, trata-se de compreender aquilo que é
agradável ao Senhor e o que Ele quer de nós, aqui e agora, na nossa história
atual.
E talvez, se nos mantivermos sob o
seu olhar cheio de bondade, haverá também da parte d’Ele um sinal para Lhe
mostrarmos os nossos ídolos. Aqueles ídolos que que escondemos, como Raquel,
sob as dobras do nosso manto (cf. Gn 31, 34-35). Deixar que o
Senhor veja os nossos ídolos escondidos -todos os temos, todos",- E este
deixar que o Senhor olhe este ídolos escondidos torna-nos fortes face a eles e
tira-lhes o poder. O olhar do Senhor faz-nos ver que neles, na realidade,
glorificamo-nos a nós mesmos,[2] porque, naquele espaço tomado por nós como se
fosse exclusivo, intromete-se o diabo, acrescentando um elemento tipicamente maligno:
faz com que não só nos «comprazamos» nós próprios dando rédea solta a uma
paixão ou cultivando outra, mas leva-nos também a substituir com
eles, com esses ídolos escondidos, a presença das Pessoas divinas, a
presença do Pai, do Filho e do Espírito, que moram dentro de nós. É algo
que acontece efetivamente. Embora uma pessoa diga a si mesma que distingue
perfeitamente o que é um ídolo e quem é Deus, na prática estamos tirando espaço
à Trindade para o dar ao demónio, numa espécie de adoração indireta: a de quem
o esconde, mas continuamente escuta as suas sugestões e consome os seus
produtos, de tal forma que no final não sobra sequer um cantinho para
Deus. Porque Ele é assim, Ele vai em frente lentamente. E depois outra vez
eu falei dos demônios "educados", aqueles que Jesus diz que são
piores do que aquele que foi expulso. Mas são "educados", tocam a
campainha, entram e passo a passo tomam posse da casa. Devemos estar atentos,
estes são os nossos ídolos.
É que os ídolos têm qualquer coisa
(um elemento) de pessoal. Quando não os desmascaramos, quando não deixamos que
Jesus nos faça ver que, errando, neles estamos a procurar-nos a nós mesmos sem
motivo, então deixamos um espaço onde se intromete o Maligno. Devemos
recordar-nos que o demónio exige que façamos a sua vontade e o sirvamos… Mas
nem sempre pede que o sirvamos e adoremos continuamente, não, sabe se
movimentar, é um grande diplomata. basta-lhe receber a adoração de vez em
quando para lhe demonstrar que é o nosso verdadeiro senhor e que até se sente deus
na nossa vida e no nosso coração.
Dito isto, nesta Missa Crismal quero
partilhar convosco três espaços de idolatria escondida nos quais o Maligno se
serve dos seus ídolos para nos enfraquecer na nossa vocação de pastores e,
pouco a pouco, separar-nos da presença benéfica e amorosa de Jesus, do
Espírito e do Pai.
Um primeiro espaço de idolatria
escondida abre-se onde há mundanidade espiritual, que é «uma
proposta de vida, é uma cultura, uma cultura do efémero, uma cultura da
aparência, uma cultura da maquilhagem».[3] O seu critério é o triunfalismo, um
triunfalismo sem Cruz. E Jesus reza para que o Pai nos defenda desta cultura da
mundanidade. Esta tentação duma glória sem Cruz vai contra a pessoa do
Senhor, vai contra Jesus que Se humilha na Encarnação e que, como sinal
de contradição, é o único remédio contra todo o ídolo.
Ser pobre com Cristo pobre e «porque
Cristo escolheu a pobreza» é a lógica do Amor; e não outra. No texto evangélico
de hoje, vemos como o Senhor Se apresenta na sua humilde
sinagoga e na sua pequena aldeia – a de toda a vida – para
proferir o mesmo Anúncio que fará no final da história, quando vier na sua
Glória, rodeado pelos anjos. E os nossos olhos devem estar fixos em Cristo, na
história de Jesus aqui e agora comigo, como estarão na parusia. A mundanidade
de andar à procura da própria glória rouba-nos a presença de Jesus humilde e
humilhado, Senhor próximo de todos, Cristo sofredor com todos os que sofrem,
adorado pelo nosso povo que sabe quais são os seus verdadeiros amigos. Um sacerdote
mundano não passa dm pagão clericalizado. Um sacerdote mundano não é outra
coisa que um pagão clericalizado.
Outro espaço de idolatria escondida
cria raízes onde se dá a primazia ao pragmatismo dos números.
Aqueles que possuem este ídolo escondido, reconhecem-se pelo seu amor às estatísticas,
aquelas que podem apagar qualquer traço pessoal no debate e dar a proeminência
às maiorias, que passam a ser, em última análise, o critério de discernimento.
Mas isto não pode ser a única maneira de proceder nem o único critério na
Igreja de Cristo. As pessoas não se podem reduzir a números, e Deus dá o
Espírito «sem medida» (Jo 3, 34). Na realidade, neste fascínio
pelos números, é a nós mesmos que nos procuramos, comprazendo-nos no controlo
que nos dá esta lógica, que não se interessa dos rostos, e não é a lógica do
amor, ama os números. Uma caraterística dos grandes santos é que sabem
retirar-se para deixar todo o espaço a Deus. Este retirar-se, este esquecer-se
de si mesmo e querer ser esquecido por todos os outros é a caraterística do
Espírito, o Qual carece de imagem, o Espírito não tem imagem própria
simplesmente porque todo Ele é Amor, que faz brilhar a imagem do Filho e,
nesta, a do Pai. A substituição da sua Pessoa, que já de por si gosta de «não
aparecer» - porque não tem imagem - é aquilo que visa o ídolo dos números, que
faz com que tudo «apareça», mas de modo abstrato e contabilizado, sem
encernação.
Um terceiro espaço de idolatria
escondida, emparentado com o anterior, é aquele que se abre com o funcionalismo,
um ambiente sedutor em que muitos, «mais do que pelo percurso, se entusiasmam
com a tabela de marcha». A mentalidade funcionalista não tolera o mistério,
aposta na eficácia. Pouco a pouco, este ídolo vai substituindo em nós a
presença do Pai. O primeiro ídolo substitui a presença do Filho, o
segundo ídolo a do Espírito, e este a presença do Pai.
O nosso Pai é o Criador: não alguém
que faz apenas «funcionar» as coisas, mas Alguém que «cria» como Pai, com
ternura, ocupando-Se das suas criaturas e agindo para que o homem seja mais
livre. O funcionalista não sabe alegrar-se com as graças que o Espírito derrama
sobre o seu povo e das quais poderia também «alimentar-se» como trabalhador que
recebe a sua recompensa; mas o sacerdote com mentalidade funcionalista tem o
seu alimento que é o próprio «eu». No funcionalismo, deixamos de lado a
adoração do Pai nas pequenas e grandes coisas da nossa vida e comprazemo-nos na
eficácia dos nossos programas, como fez David, quando, tentado por Satanás, se
obstinou em realizar o recenseamento (cf. 1 Cro 21, 1). Estes
são os enamorados do plano de rota, do plano do caminho, não do caminho.
Nestes dois últimos espaços de
idolatria escondida (pragmatismo dos números e funcionalismo) substituímos a
esperança, que é o espaço do encontro com Deus, pela constatação empírica.
Trata-se duma atitude de vanglória por parte do pastor, uma atitude que
desintegra a união do seu povo com Deus e plasma um novo ídolo baseado em
números e programas: o ídolo «o meu poder, o nosso poder»[4], o nosso programa,
os nossos números, os nossos planos pastorais. Esconder estes ídolos (imitando
a atitude de Raquel) e não os saber desmascarar na vida quotidiana prejudica a
fidelidade da nossa aliança sacerdotal e resfria a nossa relação pessoal com o
Senhor. Mas o que quer este bispo que ao invés de falar de Jesus nos fala dos
ídolos de hoje? Alguém pode pensar isso...
Queridos irmãos, Jesus é o único
caminho para não nos enganarmos no conhecimento do que sentimos e para onde nos
leva o nosso coração; é o único caminho para um bom discernimento,
confrontando-nos dia-a-dia com Jesus como se Ele estivesse também hoje sentado
na nossa igreja paroquial e nos dissesse que hoje se cumpriu tudo o que
acabamos de ouvir. Sendo sinal de contradição (nem sempre é sinónimo de algo
cruento ou duro, pois a misericórdia é sinal de contradição como o é, e muito
mais, a ternura), Jesus Cristo faz com que estes ídolos se manifestem, se veja
a sua presença, as suas raízes e o seu funcionamento, a fim de que o Senhor os possa
destruir, esta é a proposta: dar espaço para que o Senhor possa destruir os
nossos ídolos escondidos. E devemos recordá-los, estar atentos para que não
renasça a cizânia destes ídolos que soubemos esconder nas dobras do nosso
coração.
Gostaria de concluir pedindo a São
José, pai castíssimo e sem ídolos escondidos, que nos liberte de toda a avidez
de possuir, pois esta – a avidez de possuir – é o terreno fecundo onde crescem
estes ídolos. E que nos alcance também a graça de não desistir na árdua tarefa
de discernir estes ídolos que, com grande frequência, escondemos ou se
escondem. E pedimos-lhe ainda que, quando duvidarmos sobre como fazer melhor as
coisas, interceda a fim de que o Espírito nos ilumine o discernimento, como
iluminou o dele quando esteve tentado a deixar Maria «em segredo» (lathra),
para que, com nobreza de coração, saibamos subordinar à caridade o que
aprendemos com a lei.[5]
__________
[1] Pois o sacerdócio ministerial
está ao serviço do sacerdócio comum. O Senhor escolheu alguns para «exercer
oficialmente o ofício sacerdotal em nome de Cristo a favor dos homens»
(Conc. Ecum. Vat. II, Decr. Presbyterorum ordinis, 2; cf. Const.
dogm. Lumen gentium, 10). «Com efeito, os ministros que têm o poder
sagrado servem os seus irmãos» (Lumen gentium, 18).
[2] Cf. Papa Francisco, Catequese, na
Audiência Geral de 1 de agosto de 2018.
[3] Papa Francisco, Homilia
na Missa em Santa Marta, 16 de maio de 2020.
[4] J. M. Bergoglio, Meditações
para religiosos (Mensajero - Bilbau 2014), 145.
[5] Cf. Papa Francisco, Carta
apost. Patris corde, n.º 4, nota 18.
Fonte: HOMILIA DO SANTO PADRE
MISSA CRISMAL
(Quinta-feira Santa, 14 de abril de
2022)
Na leitura que ouvimos do profeta
Isaías, o Senhor faz uma promessa cheia de esperança que nos diz intimamente
respeito: «Vós sereis chamados “Sacerdotes do Senhor”, e nomeados “Ministros do
nosso Deus”. (...) Dar-lhes-ei fielmente a sua recompensa e farei com eles uma
aliança eterna» (Is 61, 6.8). Ser sacerdote é uma graça, queridos
irmãos, uma graça muito grande, que não se destina primariamente a nós, mas aos
fiéis;[1] e, para o nosso povo, é um grande dom que o Senhor escolha, dentre o
seu rebanho, alguns que se ocupem das suas ovelhas, de forma exclusiva, como
pais e pastores. É o próprio Senhor que dá a recompensa ao sacerdote:
«dar-lhes-ei fielmente a sua recompensa (Is 61, 8). E Ele, o sabemos,
é bom pagador, embora tenha as suas peculiaridades como a de pagar primeiro os
últimos e depois os primeiros: é no seu estilo.
A leitura do livro do Apocalipse
diz-nos qual é a recompensa do Senhor. É o seu Amor e o perdão incondicional
dos nossos pecados com o preço do seu sangue derramado na Cruz: Aquele «que nos
ama e nos purifica dos nossos pecados com o seu sangue, e fez de nós um reino,
sacerdotes para Deus e seu Pai» (Ap 1, 5-6). Não há recompensa
maior do que a amizade com Jesus, não esquecer isto. Não há paz maior do que o
seu perdão, e isto o sabemos tudo. Não há preço mais elevado do que o seu
precioso Sangue: não permitamos que seja aviltado com uma conduta indigna.
Queridos irmãos sacerdotes, se
lermos tudo isto com o coração, veremos que se trata de convites do Senhor para
Lhe sermos fiéis, fiéis à sua Aliança, para nos deixarmos amar, nos deixarmos
perdoar; são convites não só para nosso próprio proveito, mas também para
podermos assim servir, com uma consciência pura, o santo povo fiel de Deus.
Este povo merece-o, e também tem necessidade. O Evangelho de Lucas conta que
Jesus, depois de ter lido a passagem do profeta Isaías diante do seu povo, Se
sentou; e acrescenta: todos «tinham os olhos fixos n’Ele» (Lc 4,
20). Também o Apocalipse nos fala hoje de olhos fixos em Jesus, da atração
irresistível do Senhor crucificado e ressuscitado que nos leva a reconhecê-Lo e
adorá-Lo: «Olhai; Ele vem no meio das nuvens! Todos os olhos O verão, até mesmo
os que O trespassaram. Todas as nações da terra se lamentarão por causa d’Ele.
Sim. Amen!» (Ap 1,7). A graça final, quando o Senhor ressuscitado
voltar, será a graça de O reconhecermos de forma imediata: vê-Lo-emos
trespassado, reconheceremos que é Ele e também quem somos nós: pecadores, e
nada mais!
«Fixar os olhos em Jesus» é uma
graça que devemos cultivar como sacerdotes. No fim do dia, é bom olhar para o
Senhor e deixar que Ele contemple o nosso coração, juntamente com o coração das
pessoas que encontramos. Não se trata de contabilizar os pecados, mas duma
contemplação amorosa em que vemos o nosso dia com o olhar de Jesus repassando
assim as graças do dia, os dons e tudo o que Ele fez por nós a fim de Lhe
agradecermos. E mostramos-Lhe também as nossas tentações, para as
identificarmos e rejeitarmos. Como vemos, trata-se de compreender aquilo que é
agradável ao Senhor e o que Ele quer de nós, aqui e agora, na nossa história
atual.
E talvez, se nos mantivermos sob o
seu olhar cheio de bondade, haverá também da parte d’Ele um sinal para Lhe
mostrarmos os nossos ídolos. Aqueles ídolos que que escondemos, como Raquel,
sob as dobras do nosso manto (cf. Gn 31, 34-35). Deixar que o
Senhor veja os nossos ídolos escondidos -todos os temos, todos",- E este
deixar que o Senhor olhe este ídolos escondidos torna-nos fortes face a eles e
tira-lhes o poder. O olhar do Senhor faz-nos ver que neles, na realidade,
glorificamo-nos a nós mesmos,[2] porque, naquele espaço tomado por nós como se
fosse exclusivo, intromete-se o diabo, acrescentando um elemento tipicamente maligno:
faz com que não só nos «comprazamos» nós próprios dando rédea solta a uma
paixão ou cultivando outra, mas leva-nos também a substituir com
eles, com esses ídolos escondidos, a presença das Pessoas divinas, a
presença do Pai, do Filho e do Espírito, que moram dentro de nós. É algo
que acontece efetivamente. Embora uma pessoa diga a si mesma que distingue
perfeitamente o que é um ídolo e quem é Deus, na prática estamos tirando espaço
à Trindade para o dar ao demónio, numa espécie de adoração indireta: a de quem
o esconde, mas continuamente escuta as suas sugestões e consome os seus
produtos, de tal forma que no final não sobra sequer um cantinho para
Deus. Porque Ele é assim, Ele vai em frente lentamente. E depois outra vez
eu falei dos demônios "educados", aqueles que Jesus diz que são
piores do que aquele que foi expulso. Mas são "educados", tocam a
campainha, entram e passo a passo tomam posse da casa. Devemos estar atentos,
estes são os nossos ídolos.
É que os ídolos têm qualquer coisa
(um elemento) de pessoal. Quando não os desmascaramos, quando não deixamos que
Jesus nos faça ver que, errando, neles estamos a procurar-nos a nós mesmos sem
motivo, então deixamos um espaço onde se intromete o Maligno. Devemos
recordar-nos que o demónio exige que façamos a sua vontade e o sirvamos… Mas
nem sempre pede que o sirvamos e adoremos continuamente, não, sabe se
movimentar, é um grande diplomata. basta-lhe receber a adoração de vez em
quando para lhe demonstrar que é o nosso verdadeiro senhor e que até se sente deus
na nossa vida e no nosso coração.
Dito isto, nesta Missa Crismal quero
partilhar convosco três espaços de idolatria escondida nos quais o Maligno se
serve dos seus ídolos para nos enfraquecer na nossa vocação de pastores e,
pouco a pouco, separar-nos da presença benéfica e amorosa de Jesus, do
Espírito e do Pai.
Um primeiro espaço de idolatria
escondida abre-se onde há mundanidade espiritual, que é «uma
proposta de vida, é uma cultura, uma cultura do efémero, uma cultura da
aparência, uma cultura da maquilhagem».[3] O seu critério é o triunfalismo, um
triunfalismo sem Cruz. E Jesus reza para que o Pai nos defenda desta cultura da
mundanidade. Esta tentação duma glória sem Cruz vai contra a pessoa do
Senhor, vai contra Jesus que Se humilha na Encarnação e que, como sinal
de contradição, é o único remédio contra todo o ídolo.
Ser pobre com Cristo pobre e «porque
Cristo escolheu a pobreza» é a lógica do Amor; e não outra. No texto evangélico
de hoje, vemos como o Senhor Se apresenta na sua humilde
sinagoga e na sua pequena aldeia – a de toda a vida – para
proferir o mesmo Anúncio que fará no final da história, quando vier na sua
Glória, rodeado pelos anjos. E os nossos olhos devem estar fixos em Cristo, na
história de Jesus aqui e agora comigo, como estarão na parusia. A mundanidade
de andar à procura da própria glória rouba-nos a presença de Jesus humilde e
humilhado, Senhor próximo de todos, Cristo sofredor com todos os que sofrem,
adorado pelo nosso povo que sabe quais são os seus verdadeiros amigos. Um sacerdote
mundano não passa dm pagão clericalizado. Um sacerdote mundano não é outra
coisa que um pagão clericalizado.
Outro espaço de idolatria escondida
cria raízes onde se dá a primazia ao pragmatismo dos números.
Aqueles que possuem este ídolo escondido, reconhecem-se pelo seu amor às estatísticas,
aquelas que podem apagar qualquer traço pessoal no debate e dar a proeminência
às maiorias, que passam a ser, em última análise, o critério de discernimento.
Mas isto não pode ser a única maneira de proceder nem o único critério na
Igreja de Cristo. As pessoas não se podem reduzir a números, e Deus dá o
Espírito «sem medida» (Jo 3, 34). Na realidade, neste fascínio
pelos números, é a nós mesmos que nos procuramos, comprazendo-nos no controlo
que nos dá esta lógica, que não se interessa dos rostos, e não é a lógica do
amor, ama os números. Uma caraterística dos grandes santos é que sabem
retirar-se para deixar todo o espaço a Deus. Este retirar-se, este esquecer-se
de si mesmo e querer ser esquecido por todos os outros é a caraterística do
Espírito, o Qual carece de imagem, o Espírito não tem imagem própria
simplesmente porque todo Ele é Amor, que faz brilhar a imagem do Filho e,
nesta, a do Pai. A substituição da sua Pessoa, que já de por si gosta de «não
aparecer» - porque não tem imagem - é aquilo que visa o ídolo dos números, que
faz com que tudo «apareça», mas de modo abstrato e contabilizado, sem
encernação.
Um terceiro espaço de idolatria
escondida, emparentado com o anterior, é aquele que se abre com o funcionalismo,
um ambiente sedutor em que muitos, «mais do que pelo percurso, se entusiasmam
com a tabela de marcha». A mentalidade funcionalista não tolera o mistério,
aposta na eficácia. Pouco a pouco, este ídolo vai substituindo em nós a
presença do Pai. O primeiro ídolo substitui a presença do Filho, o
segundo ídolo a do Espírito, e este a presença do Pai.
O nosso Pai é o Criador: não alguém
que faz apenas «funcionar» as coisas, mas Alguém que «cria» como Pai, com
ternura, ocupando-Se das suas criaturas e agindo para que o homem seja mais
livre. O funcionalista não sabe alegrar-se com as graças que o Espírito derrama
sobre o seu povo e das quais poderia também «alimentar-se» como trabalhador que
recebe a sua recompensa; mas o sacerdote com mentalidade funcionalista tem o
seu alimento que é o próprio «eu». No funcionalismo, deixamos de lado a
adoração do Pai nas pequenas e grandes coisas da nossa vida e comprazemo-nos na
eficácia dos nossos programas, como fez David, quando, tentado por Satanás, se
obstinou em realizar o recenseamento (cf. 1 Cro 21, 1). Estes
são os enamorados do plano de rota, do plano do caminho, não do caminho.
Nestes dois últimos espaços de
idolatria escondida (pragmatismo dos números e funcionalismo) substituímos a
esperança, que é o espaço do encontro com Deus, pela constatação empírica.
Trata-se duma atitude de vanglória por parte do pastor, uma atitude que
desintegra a união do seu povo com Deus e plasma um novo ídolo baseado em
números e programas: o ídolo «o meu poder, o nosso poder»[4], o nosso programa,
os nossos números, os nossos planos pastorais. Esconder estes ídolos (imitando
a atitude de Raquel) e não os saber desmascarar na vida quotidiana prejudica a
fidelidade da nossa aliança sacerdotal e resfria a nossa relação pessoal com o
Senhor. Mas o que quer este bispo que ao invés de falar de Jesus nos fala dos
ídolos de hoje? Alguém pode pensar isso...
Queridos irmãos, Jesus é o único
caminho para não nos enganarmos no conhecimento do que sentimos e para onde nos
leva o nosso coração; é o único caminho para um bom discernimento,
confrontando-nos dia-a-dia com Jesus como se Ele estivesse também hoje sentado
na nossa igreja paroquial e nos dissesse que hoje se cumpriu tudo o que
acabamos de ouvir. Sendo sinal de contradição (nem sempre é sinónimo de algo
cruento ou duro, pois a misericórdia é sinal de contradição como o é, e muito
mais, a ternura), Jesus Cristo faz com que estes ídolos se manifestem, se veja
a sua presença, as suas raízes e o seu funcionamento, a fim de que o Senhor os possa
destruir, esta é a proposta: dar espaço para que o Senhor possa destruir os
nossos ídolos escondidos. E devemos recordá-los, estar atentos para que não
renasça a cizânia destes ídolos que soubemos esconder nas dobras do nosso
coração.
Gostaria de concluir pedindo a São
José, pai castíssimo e sem ídolos escondidos, que nos liberte de toda a avidez
de possuir, pois esta – a avidez de possuir – é o terreno fecundo onde crescem
estes ídolos. E que nos alcance também a graça de não desistir na árdua tarefa
de discernir estes ídolos que, com grande frequência, escondemos ou se
escondem. E pedimos-lhe ainda que, quando duvidarmos sobre como fazer melhor as
coisas, interceda a fim de que o Espírito nos ilumine o discernimento, como
iluminou o dele quando esteve tentado a deixar Maria «em segredo» (lathra),
para que, com nobreza de coração, saibamos subordinar à caridade o que
aprendemos com a lei.[5]
__________
[1] Pois o sacerdócio ministerial
está ao serviço do sacerdócio comum. O Senhor escolheu alguns para «exercer
oficialmente o ofício sacerdotal em nome de Cristo a favor dos homens»
(Conc. Ecum. Vat. II, Decr. Presbyterorum ordinis, 2; cf. Const.
dogm. Lumen gentium, 10). «Com efeito, os ministros que têm o poder
sagrado servem os seus irmãos» (Lumen gentium, 18).
[2] Cf. Papa Francisco, Catequese, na
Audiência Geral de 1 de agosto de 2018.
[3] Papa Francisco, Homilia
na Missa em Santa Marta, 16 de maio de 2020.
[4] J. M. Bergoglio, Meditações
para religiosos (Mensajero - Bilbau 2014), 145.
[5] Cf. Papa Francisco, Carta
apost. Patris corde, n.º 4, nota 18.
Fonte: Vatican News
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