Pão
da vida (Pixabay)
Jesus ressuscitou! Celebra esta
festa de aleluias
Frei Betto
Quem brincou quando
criança no domingo de Páscoa e escondeu ovos de chocolate no jardim? Resta em
nós uma perene idade da inocência. A ternura denuncia a veracidade do amor,
sublinha Milan Kundera. Recôndito no qual evocamos, nostálgicos, as missas de
domingo, as procissões sob andores cercados de velas, o toque salvífico da água
benta, o silêncio acolhedor de igrejas que o gótico não teve vergonha de
desenhar como vulvas estilizadas.
Jesus ressuscitou! -
celebra esta festa de aleluias. Ainda que a razão não alcance a dimensão do
fato pascal, a intuição capta a crise da modernidade a nos induzir a um mundo
sem mistérios e enigmas. Mundo sombrio, onde os mortos se sobrepõem aos vivos.
Até o advento do
Iluminismo, a inteligência recendia a incenso. Copérnico e Galileu
decifraram a harmonia da natureza como reflexo do Criador, e Newton acertou
seus cálculos pelos ponteiros dos relógios das catedrais. Depois, o dilúvio
inundou os claustros. A razão irrompeu soberana e relegou à superstição tudo
que não fosse mensurável. Então, o mistério aflorou.
De que valem perguntas
quando se julga possuir todas as respostas? Voltaire e os enciclopedistas
ousaram secularizar a inteligência e, mais tarde, Baudelaire e Rimbaud tatearam
ávidos em busca de um Deus capaz de aplacar-lhes a sede de Absoluto.
Dostoiévski revestiu-se da figura emblemática de Jesus, despiu seus monges das
vestes eclesiásticas, escancarou-lhes a alma atormentada pelos demônios da
dúvida.
Nietzsche roubou o fogo
dos deuses e incendiou de liberdade o espírito humano. Sartre proclamou que o
inferno são os outros e erigiu o absurdo da morte em ato final que destitui a
vida de qualquer sentido.
Entre angústias e
utopias, o último século foi também marcado pelo enigma Jesus. Corações e
mentes o acolheram como paradigma: Claudel, Simone Weil, François Mauriac,
Chesterton, Péguy, Graham Greene, Alberto Schweitzer etc. No Brasil, Murilo
Mendes, Sobral Pinto, Gustavo Corção, Tristão de Athayde, Guimarães Rosa, Hélio
Pellegrino etc.
Hoje, pavores
transcendentais já não atribulariam a alma poética de um William Blake. Entre
tanta miséria, esvai-se o encanto. Jesus é Deus que se fez homem e, de homem,
virou pão. Pai Nosso/pão nosso. Esta concretude assusta. A fé cristã não
proclama a ressurreição da alma, mas "da carne". Jesus não é a figura
do Olimpo grego enaltecida pela força irrepresável da literatura. É o judeu
crucificado, por razões político-religiosas, na Palestina do século I, e cujas
aparições, como ressuscitado, contradizem as regras da ficção literária. Que autor
criaria um personagem imortal com chagas nas mãos e ansioso por comida? As
narrativas evangélicas são, tecnicamente, descrições de um fato objetivo. À luz
da fé, proclamação de que Jesus é o Cristo.
Antes de cair em mãos da
repressão que o assassinou, Jesus fez-se comida e bebida. Poeta e profeta,
dominava a linguagem realista dos símbolos. Eis aqui o desafio atual à
inquietude da inteligência. O pão repartido passa a ser corpo divino; o vinho
partilhado, aliança feita com sangue e prenúncio da festa sem fim. O Deus de
Jesus não é um velho Narciso à cata de adoradores nem um algoz irado com os
pecadores. É Abba, o pai amoroso ("mais mãe do que pai", disse João
Paulo I), cujo dom maior é a vida.
Já não temos as longas
guerras que inquietaram espíritos como Tolstói e Camus; o que vemos, de Kiev a
Guantánamo, é escabroso comparado à engenharia marcial dos exércitos em
conflito: a estrada rumo ao futuro palmilhada de corpos degradados e famintos.
Hoje, tropeça-se na rua em seres esquartejados em sua dignidade. Todos os
discursos oficiais e ajustes fiscais ofendem a condição humana por exaltarem a
concentração do lucro e ignorarem a partilha da vida. Em sua hipocrisia, o
sistema salva sua aura cristã e exclui o pão. A metafísica monetarista
estabiliza moedas e desestabiliza famílias; reduz a inflação e aumenta a
miséria; socorre bancos e multiplica o desemprego; abraça o mercado e despreza
o direito à vida - e vida em abundância, para todos.
Agora, a
globocolonização despolitiza, o esoterismo desculpabiliza e o consumismo
individualiza. Estamos à deriva neste mundo hegemonizado pelo capitalismo,
cujas pitonisas proclamam que "a história acabou".
Páscoa é travessia -
também para uma ética política que torne o pão acessível a cada boca e o vinho,
alegria em cada alma. Somos nós que, em vida, precisamos ressuscitar as
potencialidades do espírito, premissas e promessas de uma verdadeira dignidade
humana. Num misto de Marcel Proust e Caçador da Arca Perdida, necessitamos
urgentemente empreender a busca da consciência perdida, onde a solidária
indignação contra as injustiças tenha cheiro de madeleines apetitosas. Caso
contrário, seremos engolidos por esses simulacros de pirâmides - os shopping
centers - que sequer têm estrutura para contar à posteridade quão grande foi a
pobreza de espírito de uma geração que tinha, como suprema ambição, meia dúzia
de engenhocas eletrônicas.
Fonte:domtotal.com
Uma boa reflexão sobre a relação entre o homem e as coisas deDeus
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