“...quem perder a sua vida
por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9,24)
Depois
do percurso quaresmal e pascal, a liturgia nos situa novamente no chamado “Tempo Comum”; trata-se de um percurso
contemplativo que nos convoca a fazer caminho com Jesus, realizando sua missão
e preparando a comunidade dos seus seguidores. Tendo os olhos fixos n’Ele,
viveremos uma longa aprendizagem, deixando que o Mestre da Galiléia faça emergir
o que é mais nobre e humano de nosso interior. Tempo de seguimento e
identificação com Aquele que foi “humano” na sua radicalidade.
No
evangelho deste domingo, Jesus deixa claro, para todos nós, o preço do
seguimento. Responder à pergunta – “quem dizeis que eu sou? – implica identificação com seu modo de ser e viver.
Sua proposta de vida, sua liberdade diante das leis e tradições, seu
compromisso com os últimos, sua relação com o Pai... vão provocar conflitos com
aqueles que estão “petrificados” em seu modo de viver. E aqueles(as) que se
identificam com Ele também vão encontrar oposições, incompreensão e
perseguições. Por isso, ao convidar seus discípulos e discípulas a
segui-lo, foi taxativo: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia, e siga-me”
Que
significa “renunciar a si mesmo” - “tomar a cruz de cada dia”? Será que ele veio “complicar”
nossa vida com mais peso, mortificação, sofrimento...? Esta afirmação de Jesus
parece estar em contradição com outra afirmação encontrada em Mateus: “Vinde a mim,
todos vós que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso”.
“Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).
Na
vida e missão de Jesus encontramos duas grandes paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo
Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Em sintonia com o
Pai, esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o
fim.
A segunda paixão é a da “cruz”, imposta pelos
poderes religiosos e civis. É a cruz patíbulo, instrumento de tortura, imposta
pelos romanos àqueles que ousavam contrariar seu domínio. Ela não é fruto da
opção de Jesus e nem do plano do Pai. É a visibilização da violência, do ódio,
do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No
grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, estar preparado, mobilizado,
firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...
Jesus
não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o
“staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido,
a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor
dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a
vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim
entendemos a afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “Se alguém
quer vir após mim, renuncie a si
mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa
esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo
com os mais sofredores.
Infelizmente,
a história da espiritualidade confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma
espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da penitência... como se isso
fosse agradável a Deus.
Privilegiou-se
a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tudo
isso desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, descompromissada...
Sabemos
que o(a) seguidor(a) de Jesus, quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por
causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio
Jesus. Mas Jesus assumiu também a “cruz-patíbulo” e revelou sua máxima
solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta “cruz”
assumida é também visibilização da salvação.
Nesse
sentido, a cruz de Jesus e dos seus seguidores não é um “peso morto”; ela tem
sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino e da vida.
Assim, a cruz não significou passividade e resignação; ela concentrou, radicalizou
e condensou o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos
vivam intensamente.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de
solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade
curadora...
Tanta
radicalidade nos surpreende. De fato, hoje, em nossa sociedade, escutamos
expressões totalmente contrárias: “cuide-se”, “seja você mesmo”, “aproveite a vida”, “seja o
primeiro” ...
São
expressões de uma vida centrada no próprio “ego”, ou, “ego-latria”. Tal idolatria
reside no próprio interior. O coração humano é uma fábrica de ídolos; há ídolos
internos que emergem e que desumanizam, pois rompem todo vínculo e quebram toda
relação.
Jesus,
em seu convite ao seguimento, nos pediu a “renúncia” de um ídolo especialmente
perigoso e sutil: nosso “ego”. Exigiu-nos esquecer dele, negá-lo, não lhe
prestar culto, não nos colocar a seu serviço...
Nosso
ídolo interior, nosso “ego”, exige culto, sacrifícios, seguidores que lhe
sirvam. Por isso, nos agrada que nos louvem, que nos coloquem num pedestal, que
nos incensem.
Mas,
quando alguém entra no fluxo desta falsa “liturgia”, brotam, imediatamente o
veneno do desprezo, da do ódio, da violência, do autoritarismo...
Quando
Jesus propõe “renunciar a si mesmo”, na realidade está dizendo: “renuncie a si
mesmo como ídolo!”. Ele desmascara essa tendência
diabólica que nos habita. Quantas vezes nos surpreendemos sendo nós mesmos
nossa principal preocupação! Frequentemente nos tornamos o centro, fazendo que
tudo gire em torno ao nosso próprio “ego”. Habituamos a nos aproximar das
pessoas que nos agradam, que nos bajulam, que compartilham nossos apegos
desordenados, que nos dão a razão em tudo, que engordam nosso “ego”.
A
partir de nossa ego-latria, vamos criando e alimentando muitos outros ídolos
externos, que minam as nossas forças, matam nossa criatividade e esvaziam todo
espírito solidário: a busca do poder, da riqueza, da fama, da conquista... Tudo
isso nos faz entrar no círculo de morte e destruição de nós mesmos.
A
destruição dos ídolos começa por nós mesmos, esvaziando o ídolo de nosso ego.
“Renunciar a si mesmo” não é renunciar o que é mais belo que temos recebido:
uma personalidade com características únicas, uma liberdade admirável com
capacidade criativa, um espírito compassivo e solidário, uma capacidade de
relação gratuita... O que Jesus pretende é tirar nosso “ego” de seu recinto
individualista e nos situar no amplo espaço do Reino de Deus. Podemos expressar
isso numa linguagem tomada da ciência ecológica: Jesus nos chama a abandonar
nosso “ego-sistema” para transladar-nos ao “eco-sistema” de seu Reino.
A
identificação com Jesus no seu seguimento requer assumir um processo de “morte”
e levar a “cruz-staurós” até o fim. É preciso que morra em nós aquilo que não
tem futuro, que não é vida, que não é felicidade... O “ego” é pura ilusão, é só
uma ficção ou, como dizia Einstein, “uma ilusão ótica da consciência”. Quando
ele determina nossa vida, caímos no vazio, pois ele não tem em que se
sustentar.
A
renúncia à “egolatria” não é uma desgraça ou destruição de si mesmo; pelo
contrário, é a oportunidade privilegiada para deixar emergir do nosso “eu
original” os recursos mais nobres, as potencialidades de vida que não tiveram
chance de se expressar, as beatitudes mais profundas que dão sentido e sabor ao
nosso viver. Não se trata de massacrar uma dimensão de nosso ser para salvar
outra; trata-se de descobrir uma falha na percepção de nós mesmos; ou seja, com
frequência cremos ser aquilo que não somos e vivemos enganados. Trata-se de nos
libertar de tudo aquilo que nos ata ao caduco e nos impede elevar-nos à plenitude
que nosso verdadeiro ser exige.
Este
é o caminho da vida que se faz doação, presença, compromisso... vida na
fidelidade até o fim.
Texto bíblico: Lc 9,18-24
Na oração: Entendemos por medíocre aquele(a) que renunciou a viver em profundidade; perdeu
o elán vital e por isso a capacidade de entusiasmar-se pela vida, de lançar-se,
de expandir-se. O realista medíocre fica satisfeito com sua vida, mas “cheira a
morte”.
A
“mediocridade” não tem lugar no caminho do Reino; o seguimento de Jesus não é
para “medíocres”, mas para os(as) ousados(as), aqueles(as) que arriscam, que
alimentam a capacidade de criar e inovar.
-
Sua vida: determinada pela mediocridade do “ego” ou pela maneira inspirada de
Jesus viver?
Pe. Adroaldo Palaoro.
Fonte; centroloyola.org.br
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